Prenúncios de um novo sertão

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É uma coisinha aqui, outra ali, e o sertão nordestino pode estar começando a sair de um ciclo vicioso que o condenou a viver por séculos uma triste história

Por Por Renato Rovai   José Artur tem 64 anos de idade, é aposentado e sua vida desde sempre tem sido plantar e colher. Ele mora em Nova Olinda, na região do Cariri, sertão cearense, onde foi realizado o VI Encontro Nacional da Articulação no Semi-Árido Brasileiro (EnconASA), nos dias 20 a 24 de novembro. José Artur é casado com Sebastiana, mais conhecida por dona Bastinha, e tem três filhos já criados. “Os homens têm 28 e 30 anos, a idade da filha, xiiii... a mulher é quem sabe”, revela logo depois de largar o feixe de cana de açúcar que acabara de cortar para moer e “dar de comer aos bichos” – os 28 bodes e cabras que cria, junto com algumas galinhas. Logo depois, enquanto três papagaios – Cravo, Rosa e Rita – brincam no seu ombro e posam para a máquina fotográfica, ele dispara: “Aqui tem 18 hectares, mas tô só produzindo em dois. Tô pensando em aumentar, mas vamos ver... Hoje sobrevivo muito mais suficiente do que quando trabalhava na terra toda”. A experiência de agricultura familiar com base no método de cultivo agroflorestal foi uma das técnicas apresentadas pela organização do EnconASA aos participantes do evento. “É bom que as pessoas vêm aqui, mas eu não faço isso por causa das entidades, não. Tô fazendo assim porque tá dando mais certo...” A história de José Artur e de sua família é símbolo de um novo modelo produtivo que vem sendo construído principalmente no Semi-Árido nordestino e que tem garantido esperança e melhor qualidade de vida para milhares de sertanejos. Ele descartou métodos agrícolas tradicionais e questionáveis a base de monocultura, queimadas e agrotóxicos e apostou na diversidade, produção orgânica e respeito ao meio ambiente. No método agroflorestal se cultiva o máximo de culturas. Nos dois hectares que tem utilizado do seu sítio Tabuleiro, seu Artur cultiva, entre outras coisas, hortaliças, acerola, caju, palma (para os animais), cana, goiaba, manga, milho, feijão e arroz. Ele ainda trabalha com apicultura – tira 150 litros de mel por ano – e caprinocultura, com seus 28 animais. E como se tornou referência como produtor agroflorestal, também já obtém resultados com o turismo rural. “Antes, o seu Artur recebia as pessoas e tinha de parar o trabalho, ficava explicando tudo e não ganhava nada com isso. Agora, quando a gente traz as pessoas aqui, já diz que elas têm de contribuir com R$ 2 cada para que ele não tenha prejuízo”, explica Júnior Borges, técnico da Associação Cristã de Base (ACB). Mas não é só. Os turistas podem aproveitar para almoçar em sua casa e se quiserem também podem se hospedar. Lá há um quarto com quatro camas para aqueles que querem conhecer mais de perto a vida de uma família do sertão. “Antes ficava esperando a chuva, hoje trabalho o ano inteiro. Tem sempre alguma coisa para a família fazer”, diz. O novo modelo de empreendimento tem sido tão exitoso que em setembro do ano passado José Artur foi ao Banco do Nordeste e fez um empréstimo de R$ 3.181,00 para ampliar sua horta. Em março deste ano, quitou a dívida. “O gerente falou para eu aproveitar e pegar de novo. Eu não, pra que se ainda não tenho como plantar mais? Tem de ser aos poucos, estraguei muita terra quando trabalhava botando fogo nela, agora tem de esperar.” Seu José Artur não é um exemplo de como tudo anda as mil maravilhas pelas bandas do sertão. Ele ainda é um caso atípico. Sua propriedade já atingiu um patamar de sucesso que requer tempo e muita fé, pois esse modelo alternativo ainda está em processo de consolidação da sua cadeia produtiva. Há, por exemplo, muita dificuldade para a comercialização. “Eu consigo vender as coisas na feira organizada pela ACB e também de porta em porta”, explica. As flores do Cariri “Meu marido não aceitava essa idéia de eu trabalhar, todo dia reclamava muito, dizia que tinha de cuidar da casa, que as coisas não estavam como ele gostava. Mas eu insistia e vinha para cá”, relembra Elani Xavier, enquanto conta sua história e a do grupo que organizou a Floricultura Nossa Senhora Aparecida, no município de Barbalha, também na região do Cariri cearense. Ali, o sonho ainda está, literalmente, começando a dar as primeiras flores e as 11 pessoas – oito mulheres e três homens – que se organizam em torno do empreendimento não conseguiram amealhar praticamente nenhum resultado financeiro. O projeto começou em 2003 na Associação dos Pequenos Agricultores de Santo Antônio da Arajara. Eram 18 membros envolvidos, que diminuíram quando a maior parte do grupo decidiu que, para colocar o empreendimento de fato de pé, era necessário solicitar um empréstimo do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). “Antigamente a nossa região vivia só da plantação de alho e, com a entrada dos alhos das outras partes, como Minas, São Paulo e Argentina, maiores que os nossos, perdemos o trabalho”, explica Alberto José Teófilo. Até por conta disso, exceto a família da dona da terra, Silvana Pereira da Silva, também uma cooperada, as outras recebem algum tipo de auxílio de projetos de renda do governo. “Isso faz a gente se virar enquanto as flores ainda não dão resultado”, diz Elani Xavier. Mas, de algum jeito, os resultados começam a chegar. A primeira parcela do empréstimo do Pronaf vence em junho de 2007. O grupo terá de desembolsar na ocasião R$ 1.190,00. “O dinheiro já está separado”, revela José Teófilo. Por enquanto, o que tem sido o carro chefe comercial do projeto não são as flores, mas as samambaias e os tangos, que são vendidos em floriculturas e funerárias da região. A produção de flores, como o girassol, que já ocupa um pequeno pedaço do 1 hectare utilizado para a plantação, ainda está sendo estudada. Sementes de um novo modelo Diferente do que uma certa arrogância do Brasil “moderno” supõe, estudo e pesquisa fazem parte da luta de uma boa parte dessa gente que vem construindo saídas alternativas para escapar da miséria e da pobreza. Uma conversa rápida com Juvenal Januário Matos, 69 anos, em meio ao seu quintal produtivo na cidade do Crato, local onde planta e colhe manga, laranja, goiaba, serigüela, jaca e uma quantidade enorme de outras frutas, destrói a visão burocrática de que cultura é algo de papel. Além das plantas, Juvenal Januário mantém no terreno acidentado no fundo de sua casa um tanque para criação de carpas e faz o papel de “gerente” de um banco de sementes. Na verdade, de uma edícula construída ao lado da pequena residência, ele organiza a cooperativa Casa de Sementes Senhor dos Exércitos, composta por 36 pequenos agricultores que pegam as sementes naturais de diferentes culturas e na safra seguinte devolvem em dobro para que novas famílias possam se beneficiar do projeto. Seu Januário ainda cuida de seis tarefas (pouco mais de 1 hectare), que o povo chama de Roça do Doido, onde ele mistura todas as plantas e divide os canteiros com plantação de girassol. Parece muito para um homem de sua idade, mas ele ainda é professor do programa Brasil Alfabetizado do governo federal. “Tive 22 alunos aqui na primeira turma, mas ela acabou em maio e não veio mais gente querer aula. Se for para ficar dando aula para pouca gente sem interesse, não vou aceitar dinheiro do governo, não. Tem que ser gente com interesse”, explica. Uma aluna, ao seu lado, Dulçolina Goma de Matos, 72 anos, interrompe: “Só tinha gente mais velha que eu nessas aulas, imagine...”, e cai na risada. Conhecida por dona Doce, ela é a esposa da vida inteira de seu Juvenal. Com ele, teve 12 filhos. “Só se criou quatro, os outros oito Deus levou cedinho”, diz. Essa pequena revolução que está acontecendo nos cantos do Nordeste ainda está para ser contada. Como, de alguma forma, ainda só começa a ser construída. É muita coisinha aqui e ali que ainda sobrevive mais pela força e pela fé dessa gente, que, muitas vezes na beira dos 70, trabalha sem parar, de sol a sol, feliz da vida só por poder trabalhar. E também pela iniciativa da Articulação no Semi-Árido (ASA), que, com o seu programa principal, que visa a instalar 1 milhão de cisternas no Semi-Árido brasileiro e que já beira quase a casa de 200 mil, vem mudando uma história secular. E uma história muito triste, de um povo muito, mais muito mesmo, feliz. F O Semi- Árido pensa o novo Brasil No VI Encontro Nacional da Articulação no Semi-Árido Brasileiro (ASA), gente de todo o Nordeste pôde debater a concepção de um novo país, em que o desenvolvimento chegue a todos os cantos e melhore a vida de todos os brasileiros. Estiveram presentes mais de 500 lideranças de todos os estados da região, além de representantes do Espírito Santo e de Minas Gerais. Eles têm discutido um novo projeto de desenvolvimento para o Semi-Árido brasileiro. O espírito da construção de uma realidade para essa região é o do desenvolvimento sustentável, com respeito ao meio ambiente e à diversidade regional. O projeto mais conhecido da ASA é o que tem por objetivo construir 1 milhão de cisternas nesta região. Atingida essa marca, o Semi-Árido praticamente eliminaria os impactos da seca. E se o número é gigantesco, praticamente um quinto da meta já foi atingida, pois 165 mil cisternas já estão mudando a cara do sertão. Na região do Cariri cearense, onde aconteceu o encontro, a ASA teve o cuidado de relacionar uma série de experiências de produção alternativa que pudessem ser visitadas, tanto pelos delegados de outros estados brasileiros, como pelos jornalistas que acompanham o evento, quase todos da imprensa independente. Uma história de cisterna José Cazuza da Silva, conhecido por Zé Padre, mora na Serra do Catolé, na cidade de Santana, na divisa com Nova Olinda. Na verdade, sua casa fica a 15 km do centro de Santana e a 24 km do de Nova Olinda. “São quatro léguas de uma e umas três da outra”, explica. Até 2003, para pegar água, Zé Padre percorria uns 10 quilômetros de bicicleta em cada viagem que fazia para trazer um galão de 25 litros de água. “Eram quatro viagens todos os dias porque eu tinha de pegar água pra gente, mas também pra uns pés de planta que tinha aqui.” Hoje ainda falta água, mas a rotina já é outra. “Quando só eu usava a cisterna, durava até setembro a água, depois faltava. Mas hoje tem os vizinhos e acaba todo mês. Aí eles trazem uma carrada e enchem a cisterna uma vez. E assim a água dá para toda a gente.” Logo depois da cisterna, José Padre conseguiu plantar um pouco mais e, juntando com o que ganha de aposentadoria rural, R$ 350, deu para melhorar a casa. Fez um financiamento de R$ 2 mil e hoje paga R$ 90 por mês por isso. A saída da taipa para a alvenaria fez com que o programa Luz para Todos chegasse. “Veio na época da eleição do prefeito (em 2004). Eles diziam que era o homem que estava botando a luz e a gente acreditava. Mas hoje a gente sabe que não é nada disso não, que é lá do Lula essa medida, né?” A vida da família de Zé Padre ainda é difícil, mas muito melhor que antes. Com 67 anos, ele está no segundo casamento. Francisca Quinha, 51 anos, é a atual esposa. Com ela tem um único filho, José Humberto, 12 anos, que está na quinta série do ensino fundamental. “Da outra vez, tive oito, mas não deu certo e eu fui embora. Ela disse que não gostava de mim. Fiz minha mala e me fui.” Do primeiro relacionamento, Zé Padre relembra o quanto correu mundo afora em busca de trabalho. “Como aqui nada dava, fui para o Maranhão, Goiás, várias partes, mas não tinha jeito.” Hoje, com seus 67 anos, está empolgado. Ele tem uma área, onde planta de tudo, com 15 tarefas (5 hectares). A produção é no sistema agroflorestal, com diversidade de plantio e sem o uso de queimadas e agrotóxicos. O que colhe tem lhe garantido pouco rendimento, mas uma boa sobrevivência. Ele tem caju, milho, feijão, urucum, mandioca, pequi, abacate e outras culturas. “A renda que eu tô enxergando não é essa de agora, estou enxergando daqui uns dias”, revela. Mas quantos dias? “Daqui uns três anos vai estar bom. É que muita coisa ainda não tá dando direito, tem muita planta que não produziu. Tem de esperar. ‘As coisas só é quando Deus qué’...” E a esperança tem sido companheira de Zé Padre. “Eu sabia que ia ter uma televisão. Hoje a mulher se diverte vendo as coisas. Mas para conseguir as coisas tem de trabalhar e comigo não tem hora não. Até o moço que veio construir a cisterna aqui ficou bravo. É porque se eu me acordo à 1h da manhã e tô sem sono, vou buscar trabalho. E teve um dia que um deles também estava acordado e a gente levantou quase que um muro todo da cisterna. No dia seguinte o outro veio reclamar que não tinha dormido. Se não tinha dormido, por que não se levantou para ajudar a gente, né?”, e se esparrama de rir. No programa de cisternas da ASA, para construir o equipamento são contratados e pagos um pedreiro e um servente. Foi um deles que deve ter se incomodado com a ansiedade insone de Zé Padre. F