Qual é a reforma?

Escrito en NOTÍCIAS el

Apresentada como panacéia pela mídia, reforma política será o centro do debate no novo Congresso e movimentos sociais estão mobilizados para que as mudanças sejam para melhor

Por Nicolau Soares   De tempos em tempos, durante os processos eleitorais ou quando surge algum escândalo no Congresso Nacional, uma expressão é repetida em toda a mídia como um mantra: reforma política. Ela é tratada como solução para a maioria dos males que assolam nosso cenário político, de casos complexos de corrupção no Congresso até o caixa dois das eleições. E, de fato, pode ter um papel importante. “A reforma política é a base de uma transformação radical necessária para a cultura política do país”, assegura Célio Nori, sociólogo e membro da comissão de coordenação do Movimento Nacional Pró-Reforma Política com Participação Popular. “Estamos vivendo uma crise de representatividade na nossa política. Os partidos não cumprem, dentro dessa cultura em que a política virou um negócio, o papel de representação da sociedade”, conclui. Mas, do que se trata exatamente essa tão falada reforma? Aí é que mora o perigo. “A reforma política é importante, mas não é panacéia”, critica Cândido Grzybowski, presidente do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas(Ibase). “A mídia a apresenta como a reforma das reformas. É preciso olhar com cuidado para que ela não cause novos problemas”, afirma. Na grande mídia de que fala Grzybowski, o tema resume-se a mudanças no sistema eleitoral e partidário e expressões como “votação em lista fechada”, “fidelidade partidária” e “financiamento público de campanha” aparecem nos textos dos articulistas políticos com freqüência (ver box). Para os movimentos sociais, no entanto, a agenda é outra, muito mais abrangente. “Os movimentos sociais, por meio da Coordenadoria dos Movimentos Sociais (CMS), e o movimento sindical querem uma reforma política não apenas em termos de organizações partidárias”, sustenta Artur Henrique da Silva Santos, presidente nacional da Central Única dos Trabalhadors (CUT). “Também defendemos fidelidade partidária, financiamento público, mas tem que ser mais abrangente, ampliar a participação popular”, conclui. O frei Sérgio Görgen, membro da direção da Via Campesina e representante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) para o tema, concorda. “O sistema representativo construído após a ditadura e consolidado na Constituição de 1988 se esgotou, está em crise. É preciso reformar todo o Estado para que ele esteja voltado às necessidades do povo”, sustenta. “É preciso equilíbrio entre a democracia representativa e a direta. O voto tem caráter absoluto, depois de dado, o eleitor não tem mais como influir. Isso afasta as pessoas da política”, analisa Görgen. Nesse sentido, ele defende a criação de mecanismos como audiências públicas, assembléias populares e plebiscitos revogatórios de mandatos. “É necessário um controle social da ação do Estado.” No tocante à democracia direta, dois projetos de lei apresentados pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) no Congresso abordam o tema. Trata-se do PL n.º 4.718, de 2004, na Câmara dos Deputados, e o PL n.º 001, de 2006, em tramitação no Senado. Os dois visam a regulamentar o artigo n.º 14 da Constituição, que prevê mecanismos que tornem efetivas as manifestações da soberania popular. Assim, fazem com que plebiscitos e referendos não dependam de decisão do Congresso Nacional, além de reforçarem a iniciativa popular legislativa. Os dois projetos são baseados nas idéias do jurista Fábio Konder Comparato, que considera fundamental “reforçar os mecanismos de democracia direta e participativa”, o que seria contemplado pelas propostas da OAB. O exemplo mais concreto de democracia direta que tivemos recentemente foi o referendo sobre a comercialização de armas de fogo, realizado em outubro de 2005. A experiência deixou claro o poder que grupos econômicos podem exercer. “Hoje, eles já exercem pressão sobre um grupo menor de pessoas que tomam as decisões, no Congresso e nas assembléias. São lobbies organizados, poderosos e focalizados”, analisa Artur Henrique. “Democracia é a incerteza como regra, nunca se sabe como um processo ocorrerá. A campanha do desarmamento não foi informativa, não explicou a questão, mas o princípio é educativo. É a população sentir que é parte do poder. Hoje a gente vota e acabou, é uma usurpação do poder pelos representantes”, concorda Grzybowski. Discussão ampla Além dos projetos da OAB, a CUT defende outras formas de participação. Pretende, por exemplo, que toda empresa pública tenha em seu conselho administrativo um representante eleito pelos trabalhadores. Outras propostas da entidade resgatam a experiência do orçamento participativo, política consagrada em algumas prefeituras petistas (Porto Alegre em especial), mas que não conseguiu fazer uma boa transição para as esferas estaduais e federal. “Em nível municipal, deveria haver uma lei que obrigasse que certas decisões fossem tomadas por conselhos, mesmo no caso de verbas carimbadas”, sustenta Artur Henrique, que propõe para outras esferas a criação de instrumentos de participação para que a sociedade seja integrada à discussão do Plano Plurianual (PPA) e da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). “O tamanho do país e as dificuldades não podem ser obstáculos para a discussão de um orçamento participativo. O Plano Plurianual, por exemplo, é discutido a cada quatro anos, e seria um primeiro instrumento”, afirma Henrique. “Hoje você não tem nenhuma garantia de participação popular. Não queremos tirar o poder dos representantes, mas distribuir poder para a população”, conclui. Esse tipo de participação é mais caro a Fátima Anastásia, professora do Departamento de Ciência Política da UFMG, do que os plebiscitos e referendos, considerados como mecanismos descontínuos de interferência. Ela lembra que a Câmara Federal, bem como várias assembléias, possui uma Comissão de Legislação Participativa, que recebe propostas de associações e órgãos de classe, sindicatos e demais entidades organizadas da sociedade civil, exceto partidos políticos. Todas as sugestões apresentadas à comissão são examinadas e, se aprovadas, são transformadas em projetos de lei e passam a tramitar normalmente. “São mecanismos que permitem que o cidadão interfira no processo entre as eleições”, esclarece. Outras formas de participação são os conselhos setoriais, como os de saúde e educação, que permitem à população uma influência direta e continuada nas políticas públicas. A discussão sobre democracia direta traz em si outra questão, talvez mais complexa: a democratização dos meios de comunicação. “Não adianta ter plataforma bem fundamentada de reforma política se não for discutida a questão da comunicação”, afirma Michele Prazeres, integrante do Intervozes e do Fórum Nacional pela Participação Popular. Nesse sentido, o objetivo principal é estabelecer instrumentos para incentivar o controle da mídia pela população, tanto em termos de conteúdo quanto das concessões em si, no caso de rádio e TV. “Nossa proposta é criar um sistema de comunicação público, que envolva comunicação pública, estatal e privada”, defende. Onda democrática Há ainda leituras mais ambiciosas. Konder Comparato afirma que o Estado perdeu a capacidade de comandar, um problema imenso em um país onde “o Estado precedeu a nação” e no qual, segundo nossa “tradição de origem ibérica”, “tudo ou quase depende da iniciativa estatal”. “Ora, o chamado neoliberalismo capitalista, imposto pelas grandes potências empresariais a partir dos anos 1980, acabou por enfraquecer brutalmente o Estado brasileiro, e por subordinar a sociedade civil ao poder das grandes empresas financeiras, que nada criam, nada produzem”, sustenta ele. “É, portanto, uma cegueira pensar que se pode fazer alguma reforma econômica ou social importante entre nós, sem uma mudança profunda na organização política, voltando a criar um Estado independente, mas controlado doravante pelo próprio povo”, completa. Para operar essas mudanças, Konder Comparato propõe duas ações: primeiro, a criação de um órgão de planejamento, separado do Executivo e, “obviamente, não subordinado ao Banco Central, que só sabe fazer o jogo do capital financeiro”; segundo, separar as funções de chefe de Estado e chefe de governo, dando àquele a direção das políticas nacionais de desenvolvimento e relações exteriores (as “duas grandes políticas nacionais”), e deixando ao primeiro-ministro a administração dos serviços públicos e o relacionamento com o Congresso Nacional. De acordo com Grzybowski, o principal objetivo de uma reforma tem que ser gerar uma nova “onda democrática” no país. Medidas que estão totalmente fora do debate, como a limitação do uso de medidas provisórias e o voto aberto no Congresso, por exemplo, podem ajudar nesse sentido. “Nosso problema é a centralização do poder no Executivo, que faz barganhas e consegue o que quer no Legislativo. Precisamos de um novo equilíbrio de poderes”, avalia. Ele argumenta que o Congresso é hoje uma “confederação de interesses privados, não a representação do interesse público” e precisa recuperar esse papel. Para isso, deveria ter mais poder sobre o orçamento, para que este se torne impositivo ao Executivo. “Hoje o presidente, na prática, faz o orçamento como quer”, diz. “Isso tornaria o parlamento o que ele é nas democracias, ou seja, o poder central”, defende. Para Artur Henrique, o principal problema é mudar a forma como a política é vista pela população brasileira. “É preciso quebrar valores que foram incutidos na sociedade brasileira de que a política é suja. Tem a ver com mudança de comportamentos, com educação. Vinte anos de ditadura e mais dez de neoliberalismo fizeram um estrago grande. Uma mudança dessas não acontece de uma hora pra outra”, avalia.