Qual o partido da escola sem partido?

Escrito en BRASIL el
Como seria possível definir o projeto educacional de um país a partir da noção vaga e enganosa de “neutralidade”? A própria escolha pela educação já é uma opção política Por Fernando Nicolazzi, no Sul21

No dia 24 de maio, a Câmara Municipal de Porto Alegre deu abertura ao processo referente ao PLL 124/2016, de autoria do vereador Valter Nagelstein. Segundo nos é informado no site da Câmara, tal projeto tem por objetivo instituir, “no âmbito da educação municipal, as diretrizes orientadoras ao comportamento aos estabelecimentos de ensino, funcionários, responsáveis e corpo docente, no ministério que envolve o ensino de questões sócio-políticas, preconizando a abstenção da emissão de opiniões de cunho pessoal que possam induzir ou angariar simpatia a determinada corrente político-partidária-ideológica, desviando-se da neutralidade e do equilíbrio necessários à condução do aprendizado do corpo discente”.

O fato traz para o contexto municipal uma situação mais abrangente que envolve projetos apresentados em outros âmbitos legislativos nacionais, como é o caso, para citar apenas dois exemplos, do PL 190/2015, protocolado na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul pelo deputado estadual Marcel van Hattem, e do PL 867/2015, proposto à Câmara dos Deputados pelo deputado federal Izalci Lucas Ferreira. Em comum, todos incidem diretamente nas formas de atuação de professores e professoras em diferentes níveis de educação. Além disso, vinculam-se, em graus variados, ao programa defendido pelo movimento intitulado “Escola sem partido”, cujo mote principal é “educação sem doutrinação”, recentemente apresentado ao Ministro da Educação interino, Mendonça Filho, pelo ator Alexandre Frota e por representantes do grupo Revoltados Online.

Esta situação demanda uma reflexão sobre os sentidos e significados da educação para nossa sociedade e, de forma ainda mais relevante, sobre o papel da escola e dos profissionais da educação na construção e difusão dos princípios democráticos e dos valores de cidadania a eles atrelados. De modo geral, os textos destes projetos e suas respectivas justificativas invocam a neutralidade do Estado contra o que é definido como doutrinação ideológica, política e partidária, sem que uma definição mínima do que vem a ser tal doutrinação seja oferecida e justapondo de forma pouco precisa conceitos como ideologia política e ideologia partidária.

Um dos pontos mais controversos destes projetos reside na ideia de que os educadores e educadoras não devem discutir, nos espaços escolares, temas e conteúdos que possam contradizer as convicções morais dos pais e mães dos estudantes. Dependendo da turma, um professor estaria em uma situação de impasse ao tratar das origens da humanidade, pois não poderia discutir o evolucionismo diante de um aluno cuja crença familiar preconizasse o criacionismo. Da mesma forma, um adepto do liberalismo poderia ter sua moral familiar questionada em uma aula de história que discutisse as relações entre classes sociais e industrialização no século XIX, ou uma família socialista poderia acusar o professor do seu filho de ferir seus valores morais em uma aula sobre a ideologia liberal e a crença no livre mercado. E estes exemplos nem tocam ainda em outras questões tão ou mais sensíveis, como a educação sexual e o tema das relações de gênero.

A situação é de tal gravidade que o projeto do deputado federal Izalci Lucas Ferreira foi apensado ao PL 7.180/2014, de autoria do deputado Erivelto Santana, que pretende alterar o artigo 3º. da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/1996) em prol do “respeito às convicções do aluno, de seus pais ou responsáveis, tendo os valores de ordem familiar precedência sobre a educação escolar nos aspectos relacionados à educação moral, sexual e religiosa, vedada a transversalidade ou técnicas subliminares no ensino desses temas”. Moralidade, sexualidade, religiosidade confundem-se no sentido de impor limites demasiadamente restritivos ao campo da educação, incidindo tanto no ensino das humanidades, alvo principal dos projetos, como no ensino de temas ligados à saúde pública. Imaginem um ambiente escolar desprovido de discussões a respeito da prevenção de doenças sexualmente transmissíveis, eis o mundo vislumbrado pelos proponentes e defensores de uma tal “escola sem partido”.

Estamos diante de uma projeção do espaço familiar, ou seja, do âmbito privado, sobre o ambiente amplo da sociedade, onde a dimensão pública deve prevalecer como condição fundamental para as discussões sobre o bem comum e sobre a justiça social. Em outras palavras, o que tais projetos pretendem é realizar um esvaziamento da dimensão pública do ensino e, consequentemente, a suposta despolitização da prática educacional. O ensino e a aprendizagem demandam, mesmo em escolas privadas, a existência desta dimensão, que existe através do livre diálogo entre professor e aluno, bem como da liberdade de atuação dentro do espaço escolar. Conhecer é um ato social, não simplesmente uma faculdade biológica; ele pode e deve ser apartidário, mas jamais será “neutro”. Afinal, como seria possível definir o projeto educacional de um país a partir da noção vaga e enganosa de “neutralidade”? A própria escolha pela educação já é uma opção política.

Em uma sociedade na qual parlamentares atuam orgulhosos em nome de um modelo restritivo e excludente de família, a escola pode e deve se constituir como um lugar de mediação entre o âmbito familiar e a instância social. Nem refém da moralidade privada, nem subjugada pela lógica partidária: a escola é o lugar privilegiado para a educação pública, mas uma educação que depende das liberdades de ensino, de aprendizagem, de pesquisa e de divulgação do pensamento, como definido pela constituição. Qualquer projeto contrário a isso não diz respeito à educação, apenas revela interesses privados, eles próprios ideológicos e partidários. Resta, então, saber qual o partido da escola sem partido.

Fernando Nicolazzi é professor do Departamento de História da UFRGS.

Foto de capa: geralt