Quando vencer não é o mais importante

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Brasileiros sem-teto participam do torneio mundial de futebol de rua, enfrentando uma realidade bem distinta daquela dos craques milionários da seleção brasileira

Por Adolfo Bacci   A Copa do Mundo de 2010 será no Brasil. Mas não é qualquer torneio e sim a Homeless World Cup, evento que, em sua quinta edição, reuniu equipes de futebol de rua representando 48 países de 29 de julho a 4 de agosto, em Copenhagen, na Dinamarca. Mas que tipo de futebol é esse que tem uma final em que a Escócia vence a Polônia por 9 x 3 e o Brasil não passa do 22º lugar, atrás do Afeganistão, que ficou em 20º? Praticado por sem-teto ou pessoas que estão em situação de risco social, o futebol de rua tem características próprias. A quadra é de cimento e mede 22 m por 16 m. O gol tem 4 m de largura por 1,30 m de altura e cada time tem um goleiro e três jogadores na linha. As equipes também podem ser mistas, com atletas de ambos os sexos. “Nosso grande destaque no Mundial foi a Michele, uma garota de 17 anos que mora na Cidade de Deus, no Rio. Ela foi eleita a melhor jogadora do torneio”, conta Flávio Fernandes, o Pupo, professor de Educação Física e treinador do time. “Ela é baixinha, troncuda e anda arrastando o pé. Marrentinha, parece mesmo o Romário e virou uma atração. Foi cumprimentada pelo príncipe da Dinamarca e abriu a boca de emoção”, conta Guilherme Araújo, administrador e presidente da Organização Civil de Ação Social (Ocas), entidade que busca a inclusão social de moradores de rua e é responsável pelo time do Brasil. Michele não era a única estrela do Brasil. A seleção tinha Daniele, de 21 anos, moradora de Bento Ribeiro, o bairro onde nasceu Ronaldo, o Fenômeno. A participação delas é fruto da mudança de critérios na formação do time brasileiro. Anteriormente, a equipe era formada apenas por moradores de rua que trabalham na venda de revista Ocas, editada pela organização. “As pessoas nos procuram e recebem dez revistas para vender, ao preço de R$ 3 cada. Todo o dinheiro fica para o vendedor. A partir daí, ele fica com R$ 2 de cada nova revista e R$ 1 fica para a Ocas. Temos pessoas que vendem 500 revistas por mês, conseguindo uma renda líquida de R$ 1 mil. Há casos de pessoas que deixaram as ruas a partir dessa renda”, esclarece Guilherme Araújo. Nos primeiros campeonatos (Graz, Gotemburgo, Edimburgo e Cidade do Cabo), o time brasileiro foi formado pelos esforçados vendedores de revistas. Neste ano, a seleção foi ampliada. “Houve um campeonato chamado Albergue Solidário e escolhemos 25 jogadores, que treinaram com 20 vendedores da Ocas. Selecionamos três pessoas de cada turma e mais duas garotas do Rio que fazem parte do projeto Bola Pra Frente, dirigido pelo Jorginho e pelo Bebeto (ex-jogadores da seleção brasileira), e fomos para o torneio”, explica Araújo. Em oito dias, o Brasil jogou 14 vezes. Ganhou de Grécia, Zimbábue, Eslováquia e Alemanha, por duas vezes. Perdeu para Portugal, Ucrânia, Lituânia, Sérvia e Zâmbia por duas vezes. Não houve vingança contra a França. Perdemos para eles por duas vezes também. Araújo deseja montar, já para a Copa da Austrália no ano que vem, uma equipe com jogadores de 16 a 20 anos. “Vamos optar por pessoas que ainda podem sonhar em ter um futuro no futebol. Ou mesmo fora dele, pelo estudo. Não estou trocando o enfoque social por uma melhora no time, apenas queremos ampliar o leque de escolhas, podendo atender mais pessoas”, diz. A idéia é criar ainda esse ano uma Liga Nacional de Futebol de Rua, envolvendo entidades que tratam da inclusão social. Agora, para fazer parte da equipe, não há a necessidade estrita de se ater à falta de moradia. “Quem mora em favela ou albergue também está em situação de risco social, precisa ser incluído socialmente. Vamos convidar entidades como a Fundação Cafu e o Instituto Gol de Letra, mantido pelo Raí e Leonardo, para fazer um bom campeonato que revele bons jogadores”, sustenta Araújo. “Vamos procurar uma rede de televisão que possa mostrar os jogos. Além do fator social, o futebol de rua mostrou em seus campeonatos que pode ser uma nova modalidade esportiva acompanhada por muita gente.” A Homeless World Cup, que se organizou por meio de entidades que trabalham com pessoas de rua vendendo revistas, também foi ganhando força a cada edição. Em Copenhagen, havia 400 jornalistas credenciados, de 29 países diferentes. A competição tem patrocínio de empresas fortes como a Nike e apoio da União Européia de Futebol (Uefa). Eric Cantona, ex-jogador da seleção francesa, compareceu aos jogos. O site oficial da competição assegura que 77% dos participantes mudou de vida após participar do Mundial. Dois atletas brasileiros deixaram seu depoimento no site do torneio. Cláudio Bongiovanni, de 56 anos, pediu uma visão diferente das autoridades de todo o mundo sobre os excluídos. “Se eles soubessem o sentimento de união que envolve quem está aqui, passariam a ter outra visão sobre pobreza e exclusão social e teriam outras políticas para os excluídos.” Francisco de Mello, de 24 anos, preferiu falar sobre a oportunidade de haver conhecido um novo país. “É legal ter um intercâmbio com outra cultura e ver nossa auto-estima melhorada.” Para Araújo, o Mundial desse ano surpreendeu pela força dos adversários. “A gente vê uma grande organização de algumas equipes européias e a qualidade técnica dos africanos cada vez maior. Os países da América do Sul que participaram (Brasil, Argentina e Chile) tiveram dificuldades em adaptar-se ao fuso horário e também à alimentação”, conta. Na verdade, pesa contra o Brasil o fato de que, apesar de ser algo universal, há diferentes tipos de exclusão social no país e o Brasil está ainda na segunda divisão quando se fala nas maneiras de enfrentá-la. Por exemplo, um “sem-teto” da Dinamarca, por paradoxal que seja, tem teto. “O governo dá um apartamento e uma ajuda de ¤ 2 mil mensais. São pessoas bem alimentadas e que estão com um pé na miséria, mas a miséria deles, não a nossa”, conta Pupo, o treinador. Uma realidade bastante distinta da dos milionários jogadores da seleção brasileira principal. Como é o torneio As 48 seleções foram dividas em 12 grupos de quatro. O Brasil ficou com Portugal (derrota por 7 x 1), Grécia (vitória por 5 x 0) e Zimbábue (vitória por 5 x 2). Na segunda fase, eram oito grupos de seis, por ordem de aproveitamento na fase anterior. Todos se enfrentam dentro do grupo para se definir a terceira fase, quando são entregues os troféus. Os dois melhores do Grupo B se juntam aos seis melhores do Grupo A. Os dois melhores do Grupo C se juntam aos seis melhores do B e assim sucessivamente, formando três grupos de oito. De cada grupo sai um campeão. Para uma espécie de desempate, antes da segunda fase, o Brasil enfrentou a Ucrânia (derrota por 6 x 0) e a Lituânia (derrota por 12 x 3). Ficou então no grupo que tinha Sérvia (derrota por 6 x 5), França (derrota por 7 x 5), Eslováquia (vitória por 4 x 3,) Zâmbia (derrota por 8 x 5) e Alemanha (vitória por 9 x 3). O Brasil foi então disputar o Troféu Cidade do Cabo, dado ao melhor colocado entre o 17º e 24º colocado. Era mata-mata. Perdeu para o Zâmbia por 9 x 6 e só podia sonhar com o 21º lugar. Venceu a Alemanha por 6 x 3 e decidiu o 21ª posição com a França. Derrota por 9 x 4. E sem Henry. Para saber mais: www.homelessworldcup.org