"Que preta deliciosa! Que tamanho de traseira!"

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A passos largos, a moça descia a rua com ar de pressa e preocupação. A pele negra, bem escura, chamou minha atenção, em uma rua onde todas as outras pessoas eram brancas - exceto um segurança na calçada de um prédio e eu. Muitos olhavam para ela, alguns com uma expressão intrigada no rosto, talvez por causa do som que seus sapatos produziam ao tocar o chão com bastante impacto. De repente, o grito: - Que preta deliciosa! Que tamanho de traseira! Virei o pescoço rapidamente para identificar de onde vinha o berro masculino e troquei olhares com a moça de salto alto, que agora estava parada, esquecida de sua pressa. Olhamos uma para a outra, como quem pergunta "foi com você ou foi comigo?". Ela ficou um pouco desconcertada e fingiu procurar o celular na bolsa enquanto olhava para todos os lados em busca de alguém que deveria aparecer. Eu, por outro lado, logo localizei o autor da "cantada": um rapaz de óculos escuros dentro de um carro branco. Ele sorria. - Tá falando com quem, rapaz?! - gritei de volta, chamando a atenção dos pais que buscavam seus filhos na escolinha da frente. - Tô falando com aquela preta ali. A moça saiu caminhando rua abaixo e não olhou para trás. Eu, que estava segurando meu cachorro pela guia, senti vontade de jogar o saquinho com bosta na cara do sujeito - tinha acabado de recolher o cocô, mas ainda não havia jogado o saco no lixo. Quase cedi ao impulso, mas pensei que o homem poderia sair do carro e tentar me agredir. Levantei o conteúdo da sacola acima da minha cabeça e disse bem alto: - Você é igual a esse saco de bosta, seu machista racista do caralho! O rapaz ficou surpreso. Algumas pessoas que passavam pela rua olharam curiosas, sem entender por que eu falava de machismo e racismo a plenos pulmões. Felizmente, o cara do carro não disse mais nada e desviou o rosto. Encarei por alguns segundos e, sentindo o corpo agitado de indignação, voltei a caminhar com meu cachorro. Andei todo o percurso de volta para casa pensando naquela moça, que ficou tão sem reação e saiu fugindo pela ladeira. O seu olhar de cumplicidade me trouxe tristeza, como se já estivesse habituada ao tipo de assédio que ocorreu ali, como se também tivesse presenciado aquela cena muitas vezes com outras mulheres. Olhou para mim, mas não ficou para me assistir responder àquela vulgaridade machista. Apenas fugiu. Que mundo cão - com todo respeito ao meu filhote -, onde uma mulher negra aprende a temer e se envergonhar por simplesmente caminhar pelas ruas da cidade.

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