“Queria transformar a crise do protagonista em uma oportunidade”, afirma o diretor de Casa Grande

Longa-metragem dirigido por Fellipe Barbosa, em cartaz nos cinemas, tem como pano de fundo discussão sobre as cotas

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Longa-metragem dirigido por Fellipe Barbosa, em cartaz nos cinemas, tem como pano de fundo discussão sobre as cotas Por Gabriel Fabri Interpretado por Thales Cavalcanti, em sua estreia nos cinemas, o adolescente Jean está passando por uma fase de descobertas. No último ano do colégio, o garoto precisa decidir o seu futuro, ao escolher a faculdade que vai prestar – ou as faculdades, pois a sua escolha, Comunicação, não é bem aceita pelos pais. Seu contato mais próximo com o sexo oposto é no quarto da camareira Rita, em que vai escondido durante a madrugada, apenas para conversar. Vivendo em uma mansão no Rio de Janeiro, a vida do garoto começa a mudar quando o seu motorista, Severino, é demitido, devido às dificuldades financeiras da família. Agora, Jean vai e volta da escola de ônibus, onde conhece Laura, uma garota de um colégio público da cidade. Essa é a história de Casa Grande, filme dirigido por Fellipe Barbosa e premiado no Festival de Paulínia. Em cartaz nos cinemas brasileiros, esse é o segundo longa-metragem do cineasta, que estreou com o documentário Laura, lançado em 2013, em que acompanhava a rotina de uma personagem peculiar, uma brasileira-portenha aspirante a atriz em Nova York. Em entrevista à Fórum, Barbosa afirma que tentou tratar os seus personagens com empatia, permitindo a identificação do público com eles. “Eu percebo que essa tentativa, esse movimento de compreender o outro, estou vendo cada vez menos hoje”, critica. Ele discute também algumas questões que o filme levanta, ao começar pelo seu título, uma alusão à obra de Gilberto Freyre, e as comparações com O Som Ao Redor, longa-metragem de Kleber Machado Filho. Confira a entrevista completa: Fórum – Casa Grande surgiu como um filme sobre a adolescência, sobre as transformações de um garoto. Quando você percebeu que a obra poderia ir além da descoberta do mundo por um menino para um retrato crítico das relações sociais? Fellipe Barbosa – As coisas acontecem meio que juntas. Primeiro, escrevi esse roteiro pensando em como seria a minha vida se eu estivesse presente no Brasil aos 17 anos de idade, quando minha família começou a passar por uma crise financeira. Pensei na história de amadurecimento, da formação do adolescente, porque é o momento do vestibular, de decidir o seu futuro. Tem toda uma pressão sobre ele, que queria justamente se libertar dessa coisa. Creio que a questão da crítica social foi mais porque fui tocado pela discussão das cotas. Eu estava em Nova York, no Harvey, um lugar em que tinha muita consciência de que eu era minoria étnica e foi especialmente chocante, estando lá, ouvir as notícias sobre essa discussão das cotas, que estavam começando a ser experimentadas no Brasil, em 2006. Estava tão claro que tinha que ser feito alguma coisa nesse sentido, como as cotas, que então pensei em usar de pano de fundo para o filme. Nessa história de um menino terminando a escola e prestando vestibular, com uma família indo à falência, as cotas aparecem como uma ameaça, que vem de fora dos muros. Mas a questão mais essencial é que eu queria transformar a crise do protagonista em uma oportunidade para ele. Acho que isso é muito social, por que o que existe é um confronto a essa ideia de que a riqueza traz felicidade. Fórum – Que conexão você faz entre Casa Grande e Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre? Barbosa – É interessante que a primeira versão do roteiro se chamava Cotas, mas fui apresentá-lo em uma oficina, em 2008, e acharam o título muito fraco, tive que pensar em um outro. Como desde o começo o foco sempre foi nessa casa, sugeri esse nome, mas foi uma intuição, muito mais que uma racionalização. Acho que foi, na verdade, um processo inverso: a partir do título, comecei a pensar nas questões do Gilberto Freyre e em como elas entrariam nesse filme naturalmente. Percebi que as cotas não deveriam estar em primeiro plano e que o filme tinha que focar mais na relação entre empregados e patrões – nesse sentido, pensei muito em Freyre. Acho uma contradição muito brasileira, muito da Casa Grande, essa questão dos empregados e patrões terem essa relação cordial, o que esconde uma profunda alienação: o patrão nunca sabe de fato como estão na realidade os empregados, mas isso não torna o acesso entre eles menos verdadeiro. Ai pensei em como essa Casa Grande mudou. Mudou porque, hoje em dia, os empregados estão muito mais conscientes dos seus direitos. Hoje, eles têm liberdade de sair da Casa Grande, têm emprego fora dela. Acho que, mesmo se uma grande crise vier ai, essa tomada de consciência ninguém pode tirar deles. Uma coincidência em termos de sincronicidade com o filme foi a PEC das domésticas, aprovada pouco antes de eu filmar. Eu já estava falando sobre isso no roteiro, estruturando em torno das demissões dos empregados, que são, é claro, as primeiras vítimas da crise. É a partir da demissão de Severino, o motorista, que Jean tem a chance de pegar o ônibus pela primeira vez, o que é grande sonho dele, andar de ônibus, ser livre. Fórum – Qual foi a sua intenção com a cena que abre o filme, o plano que mostra a casa no fundo e o pai do protagonista saindo da piscina e apagando as luzes? Barbosa – Queria, primeiro, que fosse uma abertura muito forte e bonita. Adoro as clássicas de cinema, mais antigas, das décadas de 50 e 60, faziam-se muitas. Mas que fosse, principalmente, uma abertura que merecesse o título, a partir da qual ninguém mais fosse questionar porque você teve a pachorra e a pretensão de colocar esse nome no filme. Acho que o primeiro plano corta essa crítica, é a dimensão minuciosa de uma casa claramente muito grande. Então essa cena tem muitas funções: a primeira, descrever a casa. Segunda, estabelecer um certo tipo de humor, com a câmera removida da ação, olhando de longe e exigindo muito a atenção do espectador. É um plano que afirma também que toda música do filme vai estar presente na cena, não é trilha sonora. Fórum – Você acredita que hoje um dos maiores problemas do Brasil seja a manutenção dessa relação de Casa Grande e Senzala? Barbosa – Não acho que seja um problema, mas uma peculiaridade, e tem muita coisa boa nela. Justamente, essa possibilidade de afeto, essa ligação, acho muito bonito. No fim, o filme tenta falar dessa casa que quanto mais ela muda, mais ela parece a mesma. Acho que o problema do momento do qual a gente está falando é a intolerância muito grande com o outro, uma falta grande de compaixão, isso é o que eu mais percebo. Uma intolerância total e absoluta com pontos de vista contrários, existe um processo de linchamento público, que começa com a nossa presidenta, que tem sido linchada por um bando de gente que fica gritando um pouco sem saber por quê. Fórum – Como isso aparece no filme? Barbosa – Não sei, talvez o meu filme tenha a semente dessa polarização. Por que gosto muito mais de encenar a discussão e a polarização, muito mais do que tentar passar uma mensagem ao público de qual que é a ideia certa dos pontos de vista. Meu objetivo não é mandar uma mensagem, se eu quisesse isso iria trabalhar nos Correios. O ponto é justamente encenar uma discussão. E a única maneira de fazer isso com alguma decência é compreendendo os dois lados. A crítica só é eficiente se ela é feita com carinho, se ela é feito com amor. Se você faz a crítica com acidez, com ódio, a pessoa que ta sendo criticada não vai se identificar ali, vai rejeitar o personagem. Se você trata com empatia, você dá a chance do espectador se identificar e rir de si próprio. Foi o que tentei fazer, e eu percebo que essa tentativa, esse movimento de compreender o outro, estou vendo cada vez menos hoje. Fórum – Uma cena em que é nítida essa polarização é a cena em que a Luiza, namorada do Jean, discute com o pai dele sobre as cotas… Barbosa – Essa é uma cena com muitas camadas. Primeiro, com muito teatro. Os dois lados estão ai com teatrinho, repetindo opiniões já decoradas. Nenhum deles está interessado realmente em ser convencido. Apesar de eu, o discurso do filme aliás, estar do lado da Luiza, acho que ela chega de maneira muito violenta. O Hugo, pai do Jean, você não sabe se a opinião dele é reacionária ou se ele está só concordando com o credor dele. E o Jean tem que se colocar entre um dos dois lugares. O filme é sobre isso, o Jean é forçado a tomar uma posição, e ele não consegue. Essa cena tem esse lado, justamente, de teatralizar uma discussão que a gente ouve a cada dois almoços de família. Fórum – Tem uma cena em que a empregada aponta para uma crise de valores na família. Você vê uma crise de valores nas relações familiares ou sociais hoje no Brasil? Barbosa – A crise de valores sobre a qual estou falando ali é a mentira, essa farsa que a família está montando, com o desejo de manter as aparências. Acho que tem muito disso no Brasil, sem dúvida alguma, é um país com uma mobilidade social muito difícil, tanto para cima quanto para baixo. É muito difícil o rico deixar de ser rico, deixar de ser patrão. Mesmo perdendo dinheiro, ele dá um jeito, pelo menos a postura dele vai ser parecida. Não sei se representa uma crise de valores, entretanto, é mais uma particularidade mesmo. Fórum – É interessante, pois essa personagem tinha tantos exemplos para dar de crises de valores e ela fala justamente que encontrou uma camisinha usada, o que não quer dizer muito (que bom que foi com camisinha, né?). Ela podia ter apontado tanta coisa, mas resvalou em moralismo com o sexo… Barbosa – É, ali tem essa conotação sexual, você tem toda razão. A Noemia é uma personagem hiper evangélica, eu cortei muito dessa caracterização, mas tem um ou outro momento que você percebe isso. Ela sabe que tem alguém na casa transando, levando alguém de fora para dentro. Para uma mulher que é muito cristã como a personagem, isso é uma crise de valores, uma crise moral. A Sônia, a patroa, vê evidentemente do mesmo jeito, por que a sua reação ao relato da Noemia, invadindo o quarto da outra empregada, é super violenta. Acho que essa questão do sexo é uma coisa muito interessante para pensar. Estou falando de uma empregada que mora na casa e, no caso da Rita, é uma mulher de trinta anos, super bonita. Espera-se que ela vá dar um jeito para transar ali, sabe, é um clichê porque é o que acontece. Se ela está o tempo inteiro na casa, como que ela fazia? Eu me lembro de muitas histórias assim, não foi algo autobiográfico, mas escutava relatos assim de amigos no condomínio. Acho que isso fala muito sobre os dois lados. Mas, como eu disse, não relato com críticas ou julgamentos. Entendo os dois lados, tanto a Rita quanto a Sônia. Foi interessante quando fui apresentar o filme em São Paulo, em um debate, um homem da plateia falou que achava que o Casa Grande mostra uma violência sem ser violento. Outro falou que não, que o filme é muito violento sim, por causa dessa cena da invasão, por exemplo. Então uma outra pessoa falou “mas eu teria invadido também”. Perguntei quem mais faria a mesma coisa e talvez um terço da sala tenha levantado a mão. Achei o máximo, porque é justamente essa classe média alta se reconhecendo no cinema e aceitando essas plantas calhadas. Fórum – Você traça algum paralelo entre a descoberta social do Jean e a descoberta sexual, ambas muito presentes no filme? Barbosa – Sim, existe esse paralelo. A viagem de amadurecimento do Jean acontece paralelamente a esse objetivo, que ele nunca perde, ele quer transar. Essas coisas andam juntas. A jornada dele é sobretudo uma tomada de consciência, de estar mais presente, mais ativo no mundo. Acho que esse estado de alerta vai o tornando mais atraente para conseguir essa tão sonhada intimidade. Essa jornada de se tornar mais consciente torna o personagem mais atraente, então essas duas descobertas se cruzam. Fórum – Queria entender mais a questão autobiográfica do filme, não só no personagem do Jean, mas nos outros. Essa família, por exemplo, é uma representação da sua família? Barbosa – Tem muitos elementos autobiográficos no filme, porque escrevi esse roteiro tentando corrigir uma ausência na minha família. Por outro lado, por eu não estar presente, tem muita coisa inventada. Não deixa dúvidas de que é uma ficção. Mas muito do filme foram os atores que emprestaram, então tem muitas coisas pessoais e criações deles também. Eles construíram os personagens comigo, durante os ensaios. Acaba tendo uma confusão do que aconteceu comigo e o que aconteceu com eles, está tudo junto e misturado. Fórum – Muitas pessoas estão comparando o seu filme com O Som Ao Redor, de Kleber Mendonça Filho. Você traça algum paralelo entre as duas obras? Barbosa – Eu e o Kleber somos muito amigos e muitas pessoas cruciais da minha equipe fizeram parte do filme dele, como o fotógrafo, a assistente de direção, a produtora de set e a preparadora de elenco. Com muitas pessoas em comum nos dois filmes, já traz uma interseção, por que todo mundo contribuiu muito no longa-metragem, foi um processo muito plural. Mas a grande semelhança entre os nossos filmes, acho, é que eles partem de um lugar muito íntimo e que a gente conhece muito bem, no meu caso, a casa da minha adolescência. Partindo desse microcosmo, a gente tenta falar das nossas cidades, ele do Recife, eu do Rio de Janeiro, e talvez do país, amplificando do eixo do pessoal para o universal. Só que as estratégias são diferentes. O filme do Kleber é um mosaico, é plural, com múltiplos protagonistas e ponto de vistas. Ele não demanda uma adesão do espectador com um personagem versus o outro, a gente não se identifica com um único herói. Já o Casa Grande é muito mais clássico, é uma história de amadurecimento, um romance de formação. Foi desenhado para o espectador temer e torcer pelo Jean, alguma adesão tem que ter com ele para o filme funcionar. Foto: Divulgação