Raposa de tróia

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A lenda é famosa. Mais ou menos entre 1.300 e 1.200 a.C., um grande cavalo de madeira foi deixado como “presente” aos troianos. No entanto, seu interior, oco, escondia soldados gregos, que aproveitaram o fator surpresa para dominar e destruir a cidade de Tróia. A guerra estava vencida.

Milênios depois, a expressão “Cavalo de Tróia” segue atual. Pode ser usada, por exemplo, para definir a decisão de demarcação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TIRSS) em área contínua, fato que marca uma conquista histórica para os povos indígenas de Roraima, após três décadas de luta e resistência. Porém, o que seria motivo de comemoração tornou-se um momento de apreensão para as demais nações originárias e entidades de apoio.

Isso porque, em vez de julgarem apenas a homologação da TIRSS, ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal (STF) foram além do pedido judicial feito pelos autores, originado de uma ação popular, e determinaram 19 condicionantes que deverão afetar diretamente todas as terras indígenas do Brasil.

Dentre elas, algumas repetem o que já está previsto na Constituição Federal de 1988 e não trazem novidades, mas outras “atropelam o processo legislativo em curso no Congresso Nacional”, aponta a advogada, professora da Universidade Federal de Brasília e assessora jurídica do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Rosane Lacerda, que acompanhou ao vivo, com os povos de Roraima, a decisão do Supremo, em Brasília.

Segundo ela, as condicionantes poderão repercutir de modo muito negativo na realidade dos povos indígenas em todo o país, significando um retrocesso. A advogada aponta que elas desconsideram princípios fundamentais reconhecidos na Constituição de 1988 ou no Estatuto do Índio de 1973, como, por exemplo, o direito à consulta, consagrado na Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) – que dispõe sobre a proteção às populações indígenas e tribais de países independentes –, normativa inserida no ordenamento jurídico brasileiro em 2005. "Ela é clara ao reconhecer aos povos indígenas o direito de serem consultados em todas as questões que lhes dizem respeito”, diz a assessora.

Favorecimento ao agronegócio
No entanto, a condicionante que proíbe a ampliação de terras já demarcadas (a de número 17) é apontada como uma das mais problemáticas. “Ela favorece abertamente os setores econômicos ligados ao agronegócio, aos agrocombustíveis, às empresas geradoras de energia elétrica, mineradoras, empreiteiras, empresas de celulose, em síntese, todos os grupos que exploram ou desejam explorar as riquezas das terras indígenas”, opina Roberto Liebgott, vice-presidente do Cimi.

Na avaliação do coordenador do Conselho Indígena de Roraima (CIR), Dionito José de Souza, da etnia Macuxi, a condicionante 17 traz sérios problemas para a luta dos povos indígenas no Brasil.

“É uma decisão muito ruim para os povos que têm terra pequena e já fizeram a demarcação, porque as populações tendem a aumentar. Sem terra, como irão se desenvolver? Faltará condições dignas de trabalho para essas comunidades que, na verdade, devem ter o que é seu por direito”, afirma o líder.

Paulo Daniel, médico no setor de saúde do CIR, aponta como exemplo justamente a TIRSS, onde existem quase 20 mil habitantes em 195 aldeias. Com uma das maiores densidades demográficas da área rural de Roraima, seu crescimento populacional é de 5% ao ano: ou seja, sua população poderá dobrar em menos de vinte anos. “A proibição de ampliação das terras indígenas já demarcadas é absurda e inconstitucional. Como ficarão tantos povos indígenas no Brasil, e também aqui de Roraima, que estão confinados em terras exíguas que não permitem sequer uma sobrevivência digna nos dias atuais, quanto mais uma perspectiva viável de reprodução física e cultural?”, questiona.

Brasil de Fato