Raquel Rolnik: “O modelo carrocêntrico da cidade está nos matando”

No dia mundial sem carro, urbanista e pesquisadora afirma à Fórum que o direito a ampla locomoção pela cidade não pode ser restringido pela tarifa do transporte público

Foto: Outras Palavras
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Nesta quarta-feira (22) celebra-se o Dia Mundial Sem Carro, que foi criado por ativistas franceses em 1997 que resolveram se mobilizar e chamar a atenção para os problemas causados pelo excesso de carros nas ruas: poluição, gasto com matérias-primas e engarrafamentos intermináveis.

No Brasil, a data foi adotada no ano de 2007, porém, com baixa adesão, o que não significa que hoje não tenhamos ativistas por todo o país realizando intervenções para colocar a questão da poluição promovida pelos automóveis, exigindo melhorias no transporte coletivo e mais segurança aos ciclistas.

Todas estas pautas nos levam ao debate da mobilidade e do direito à cidade. Para tratar deste assunto, a Fórum entrevistou a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik (USP).

Raque Rolnik foi diretora de Planejamento da cidade de São Paulo durante a gestão da então prefeita Luiza Erundia (1989-1992), secretária nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades no primeiro mandato do ex-presidente Lula (2002-06), e durante seis anos foi relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada.

Na entrevista, várias questões foram abordadas em torno da ocupação massiva da cidade por carros; da recente ascensão do uso das bicicletas e o impacto disso nas cidades. “O espaço público também pode ser dos pedestres, dos ciclistas, de forma a não ser totalmente capturado pela circulação dos automóveis e dos caminhões. Isso é uma demanda muito importante e não é uma demanda só por mobilidade, é também uma demanda por saúde, porque o modelo carrocêntrico está nos matando, matando nos acidentes de trânsito e na poluição”, analisa Rolnik.

Fórum - Como você avalia nos últimos anos o avanço das políticas de mobilidade e do direito à cidade?

Raquel Rolnik - Nós começamos a observar nos últimos anos, inclusive no Brasil (há um panorama internacional e um que é mais brasileiro).

No panorama brasileiro a gente tem que pensar que o paradigma predominante é historicamente a mobilidade sobre pneus, é um modelo que começa nos anos 30, se intensifica desde os anos 50 com a indústria automobilística e basicamente as cidades se movem por automóveis, ônibus e caminhões.

Esse é o modelo hegemônico e dominante. Isso significa duas coisas: significa que nós, lá os anos 30 começamos a abandonar os trilhos, o bonde e os trens como modo de circulação, e não modernizamos esse sistema de trilho. Então são raras as cidades que têm sistema de metrô e um sistema de trem de passageiros modernizados
Isso é um problema no âmbito do transporte coletivo de massa, mas também começamos a perceber os efeitos desse modelo: expansão horizontal ilimitada, na poluição e nos danos à saúde.

Pouco a pouco começou a se consolidar dois movimentos importantes: um movimento do interior das classes médias, uma fração da classe média abandonando o carro e introduzindo a ideia de modos ativos (bicicleta, por exemplo) como forma de circulação na cidade, e também aderindo ao transporte coletivo de massa e demandando por transporte coletivo de massa.

Historicamente a classe média e a elite circulavam de carro e quem usava transporte coletivo era pobre… então, essa demanda do transporte coletivo ficava lá atrás na agenda política. A entrada de parte da classe média pressionando por transporte coletivo, não querendo mais ficar no carro, isso fez com que a gente tivesse uma pressão maior e política por uma melhoria no transporte coletivo.

Nós estamos vivendo esse duplo movimento: pressão por uma melhor qualidade do transporte coletivo que levou as prefeituras a começarem a implantar corredores exclusivos de ônibus, tirando um pedaço do carro para o ônibus, melhorado o sistema de trilhos e ao mesmo tempo introduzindo sistemas de ciclovias e promovendo esse tipo de mobilidade, que é esse modo de mobilidade ativa.

Agora, tudo isso é um movimento, porque o paradigma ainda não terminou, muito pelo contrário, são movimentos que estão abrindo espaço, vai ganhando corpo, sobretudo quando algumas gestões locais apoiam e ampliam essa agenda. Isso aconteceu em São Paulo (Gestão Haddad/ 2012-16): é uma agenda que vem da sociedade civil, encontra eco, ganha espaço… tivemos um interregno como Doria (2017-18) que foi completamente anti-ciclovia, mas na gestão Bruno Covas (2018-2021) retomou as ciclovias e está implantando mais. O que está faltando é priorização do transporte coletivo.

Fórum - Esse modelo de cidade com tantos carros nas ruas é viável?

Raquel Rolnik - É absolutamente insustentável pensar que o carro é uma opção de mobilidade. Ele funcionou nas cidades brasileiras e na cidade de São Paulo na medida em que o carro era uma exclusividade das classes médias e que, portanto, tinham todo o espaço viário para permitir a sua ampla e flexível locomoção, enquanto todas as pessoas pobres andavam de transporte coletivo.

O que mudou nesse quadro foi o momento em que os trabalhadores passaram a comprar automóveis. Você teve políticas de créditos para facilitar, foram políticas públicas, particularmente no período Lula (2002-2010), que estimularam tremendamente o acesso ao automóvel para o trabalhador. Essa foi uma das políticas centrais de desenvolvimento. Então, na hora que entraram os carros dos trabalhadores, aí entupiu a cidade, e ninguém mais anda e isso virou uma grande questão.

Eu estou colocando isso muito claramente porque quando a gente fala "quantos carros cabem na cidade", a gente tem que levar em consideração essa questão. A segunda dimensão do "quantos carros cabem": quando a gente faz a contabilidade do carro nós temos que pensar duas coisas: o espaço que ele ocupa nas ruas, mais o espaço que ele ocupa nas edificações.

Sim, não cabe. Se cada pessoa resolver ter o seu carro, não vai dar. E não adianta fazer viaduto, túnel, a exemplo de Los Angeles que foi construindo a terceira pista, a quinta pista, a sexta pista e mesmo assim continua congestionado, isso não tem como resolver, isso não é sustentável.

Fórum - Nos últimos anos observamos mais interesse e uma busca maior pelas bicicletas. Como você observa isso?

Raquel Rolnik - A bicicleta traz várias questões: tem a dimensão da mobilidade ativa, que é se mexer, uma dimensão de saúde do corpo, a relação do corpo com a cidade, que é bastante importante, mas ela também tem um limite: do quanto que é possível pedalar em um deslocamento cotidiano.

A bicicleta é excelente para os percursos que não são tão longos ou como complementar a um sistema de transporte coletivo que super funciona: você poder ir com a bicicleta até a estação do metrô, do trem, pegar o trem e o metrô, e depois andar só a pé até o seu local de destino, voltar e pegar a sua bicicleta ou vice-versa.

Para isso seria importante a gente poder pensar a questão da bicicleta, mais gente está usando, mais gente está aderindo, na medida em que mais gente vai aderindo, vai sendo mais respeitado, na medida em que isso vai ganhando um cuidado urbanístico específico, isso estimula a que mais gente possa pedalar.

Eu diria que hoje ainda há um bloqueio grande para as mulheres, a gente vê mais homens pedalando do que mulheres. Tem uma questão de colocar o seu corpo no espaço público e o sentimento de segurança ou insegurança que isso dá… temos a questão dos atropelamentos que é real, não é fictício.

Mas, me parece que essa pauta está crescendo, tanto da bicicleta quanto dos pés. A ideia de também poder circular a pé também implica a gente pensar uma cidade para uma circulação a pé: calçadas que sejam bem-feitas, sombra nas calçadas para que a pessoa não frite quando está quente demais, então isso demanda uma cidade arborizada, iluminação de calçadas etc. A maior parte da iluminação das cidades ilumina o lugar dos carros e não as calçadas, são poucos os lugares que iluminam as calçadas.

Trânsito em São Paulo: número de carros dobrou em uma década (Foto Henrique Boney)

Fórum – O direito à cidade.

Raquel Rolnik
– É muito importante colocar essa questão da mobilidade em termos de direito à cidade. E essa ideia do direito à cidade a gente também pode trabalhar em mais dimensões: uma dimensão que é o direito de poder circular amplamente pela cidade e isso implica em ter acesso ao transporte coletivo e a tarifa é uma das questões centrais, por isso todos os movimentos por Tarifa Zero são movimentos de ampliação ao direito à cidade, não depender da tarifa, e também o direito à cidade no sentido de que não apenas os carros tomem conta do espaço público.

O espaço público também pode ser dos pedestres, dos ciclistas, de forma a não ser totalmente capturado pela circulação dos automóveis e dos caminhões.

Isso é uma demanda muito importante e não é uma demanda só por mobilidade, é também uma demanda por saúde, porque o modelo carrocêntrico está nos matando, matando nos acidentes de trânsito e na poluição.

Fórum - A partir desse ponto de vista, além da presença do poder público, nós estamos falando de uma reeducação sobre o viver na cidade.

Raquel Rolnik – Totalmente… Evidentemente que o cidadão tem que se transformar, e o interessante é que esse movimento de transformação também está vindo do cidadão, de uma parcela pequena, mas está vindo.
Mas, não tem transformação radical se o poder público não estiver engajado. Ele tem que não só acolher os movimentos dos cidadãos, mas também tem que promover e isso é promovido a partir de intervenções como as ciclovias, mas também através de campanhas de educação, enfim, é uma missão dos governos promover essa mudança.