Relações da mídia com a ditadura: sobre um histórico debate da Falha de São Paulo

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Aconteceu na noite desta quinta-feira, na Casa Fora do Eixo, em São Paulo, um programa histórico da Pós-TV de Lino Bocchini, sobre o tema da cumplicidade entre a mídia brasileira e a ditadura militar de 1964-85. Reuniram-se Lino, a jornalista Thaís Barreto, do Núcleo da Memória, a pesquisadora Beatriz Kushnir e o jornalista e escritor Alípio Freire. Bia talvez seja a principal pesquisadora brasileira das relações entre a mídia e a ditadura, e é autora do livro Cães de Guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988 (Boitempo, 2004), fruto de sua tese de doutoramento na Unicamp, para a qual realizou mais de sessenta entrevistas. Alípio foi militante da Ala Vermelha, grupo dissidente do PcdoB. Preso pela Operação Bandeirantes em 1969, esteve no DOPS, no Presídio Tiradentes, na Casa de Detenção do Carandiru e na Penitenciária do Estado de São Paulo. Trabalhou duas vezes na empresa Folha, a primeira em 1968, e depois de 1975 a 1979, período no qual testemunhou a demissão de Cláudio Abramo a pedido do II Exército.

O programa pode ser assistido na íntegra aqui:

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http://www.ustream.tv/recorded/21621908   .  

No programa, Beatriz explica que dois fatos serviram de trampolim inicial para sua pesquisa. Os dez primeiros censores que chegaram a Brasília para servir à ditadura eram jornalistas, o que por si só já coloca em pauta a cumplicidade que norteia o livro. Em segundo lugar, na morte de Joaquim Alencar de Seixas sob tortura, no DOI-CODI (SP), ocorrera um fato curioso: seu filho Ivan Seixas, também torturado pelo carniceiro David dos Santos Araújo (que trucidava seres humanos no DOI-CODI com o codinome “Capitão Lisboa”), lera na Folha da Tarde a notícia da morte do pai 24 horas antes de que ela ocorresse. Numa saída com os torturadores, Ivan vê a manchete e, depois de regressar ao inferno do DOI-CODI, encontra seu pai ainda vivo. Ele só seria assassinado um dia depois.

O episódio mostra – e há outros do mesmo tipo – que a colaboração da Folha com a ditadura militar foi além do apoio puro e simples, em editoriais golpistas antes de 31/03/1964 e em sustentação ideológica depois de instalado o regime. Essa colaboração também incluía a produção antecipada da mentira sobre a morte, manchetada, em geral, como resultado de um tiroteio ou um acidente antes que o regime procedesse ao assassinato da vítima. No momento do assassinato, a vítima já estava, perante os olhos do público, “morta como resultado de tiroteio [ou acidente]”. A morte de Eduardo Leite, o Bacuri, assassinado pela ditadura, também foi anunciada antecipadamente, e de forma mentirosa, pela Folha. Seus torturadores chegaram a lhe exibir, no cativeiro, os jornais que afirmavam que ele havia fugido da prisão.

A pesquisa de Bia Kushnir e o testemunho de Alípio Freire também confirmam a já conhecida história do empréstimo de carros do grupo Folha às operações do DOI-CODI. Os carros serviram para albergar agentes da repressão em eventos de protesto contra a ditadura, para que dali eles capturassem ativistas de esquerda com mais facilidade. Os carros também foram usados para transportar presos políticos.

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O programa de Lino, que é uma verdadeira aula de história do Brasil, também tocou no tema da auto-censura e da delação. Como exemplo desta última, Alípio citou fato ocorrido no dia 07 de setembro de 1975, quando ele trabalhava an TV Bandeirantes. Alípio afirmou que depois de editada sua matéria sobre os desfiles, Roberto Corte Real, locutor do jornal do meio-dia, telefonou para a Polícia Federal, que recebeu cópias do programa.

No esforço de desarquivar o Brasil, é importante também abrir a caixa-preta da imprensa, inclusive para que os jornalistas que hoje lá trabalham possam saber um pouco mais sobre a história que lhes precede. Apesar da pesquisa pioneira de Beatriz e dos vários testemunhos de militantes anti-ditadura como Alípio, é impressionante como ainda sabemos pouco sobre esse capítulo do Brasil.