Republicanos e o triunfo da irracionalidade nos EUA

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A eleição de Obama – um negro com mensagem anticonservadora – para suceder George W. Bush abalou o âmago da visão da direita sobre seu país. Essa gente no fundo via os EUA como a nação branca e direitista para sempre moldada à imagem de Sarah Palin [candidata a vice na chama republicana em 2008].

Quando essa imagem foi repudiada pela maioria dos americanos em uma avalanche eleitoral, aquilo simplesmente não foi assimilado. Como podia ser? Como podia o brado de "Grite, baby, grite" ["Drill, baby, drill", slogan usado por Sarah na campanha] ter sido vencido por um sujeito preto, supostamente adepto de um Estado volumoso?


Desta forma, ganhou força uma tendência que sempre havia estado presente na visão de mundo da direita americana – para negar a realidade e deblaterar contra fantasmas demoníacos de sua própria criação. Agora todos podem ver.

Desde a ascensão de Obama, a direita dos EUA tem saltado freneticamente de fantasia em fantasia, como alguém atormentado por um colapso mental. Começou quando proclamaram que ele era secretamente um muçulmano e – ao mesmo tempo – que pertencia a uma seita negra nacionalista que odiava gente branca. Quando esses argumentos foram rejeitados e Obama venceu, começaram a alegar que ele nascera no Quênia, fora secretamente contrabandeado para os EUA quando bebê e as autoridades do Havaí tinham conspirado para falsificar sua certidão de nascimento. Portanto, Obama seria inelegível e o cargo de presidente deveria passar... ao candidato republicano, John McCain.

Isto não é um fenômeno lateral: uma pesquisa do Research 200 concluiu que a maioria dos republicanos, e dos sulistas, diz que Obama não nasceu nos EUA, ou não tem certeza a respeito. Um substancioso coro de congressistas republicanos repete que Obama tem "perguntas a responder". Nenhuma sólida prova – aqui está a certidão de nascimento, aqui está uma foto de sua mãe, em avançado estado de gravidez, no Havaí, aqui está a notícia de seu nascimento num jornal local havaiano – conseguiu vencer essa convicção.

A tendência atingiu sua apoteose em meados deste ano, agora com o Partido Republicano clamando em massa que Obama deseja criar "listas da morte" para praticar eutanásia contra os velhos e portadores de deficiência. Sim, Sarah Palin declarou, sem corar, que Barack Obama pretende matar seu bebê.

É preciso admirar a audácia da direita; veja o que acontece na verdade: os EUA são o único grande país industrial que não oferece tratamento médico regular a todos os seus cidadãos. Estes têm que cuidar de sua saúde cada um por si, e 50 milhões de pessoas não conseguem arcar com um plano de saúde. Consequentemente, 18 mil cidadãos dos EUA morrem desnecessariamente a cada ano, por não terem acesso aos cuidados de que precisavam. Isto equivale a seis 11 de Setembro, ano após ano. Mas eis que os republicanos acusaram de "assassinos" os democratas que tentam deter essa mortandade estendendo a saúde pública. E tiveram êxito, colocando a reforma da Saúde na defensiva.

Os republicanos defendem o sistema existente, inclusive porque receberam polpudos recursos financeiros dos planos de saúde privados que se beneficiam do mortífero status quo. Mas não podem fazê-lo honestamente: 70% dos americanos dizem que é "imoral" um sistema de saúde que não abrange todos os cidadãos. Então, inventaram mentiras para fazer com que qualquer expansão da saúde pública para salvar vidas soe como uma depravação.

Poucos meses atrás, Betsy McCaughey, uma participante de vários conselhos de direção de empresas privadas de saúde, supostamente detectou uma cláusula na legislação proposta para a reforma da saúde que pagaria para pessoas idosas consultarem um médico e fazerem um testamento. Betsy difundiu o boato de que era uma forma de eutanásia, em que anciãos seriam forçados a autorizar sua própria morte. O boato foi esticado, para incluir os portadores de deficiências, como o filho mais novo de Sarah Palin, que alegadamente seria obrigado a "justificar" sua existência. Era uma completa inverdade, mas a direita tinha o seu discurso: Sarah taxou o suposto projeto de "totalmente perverso".

O sucesso tem sido espantoso. Agora, qualquer conversa sobre saúde tem de começar com um democrata explicando exaustivamente que não, eles não são a favor de matar os velhos, enquanto os republicanos seguem em frente com a defesa do status quo que mata 18 mil pessoas por ano.

A hipocrisia é espantosa. Quando Sarah Palin foi governadora do Alasca, encorajou os cidadãos a fazerem seus testamentos. Quase todos os republicanos que investem contra as "listas da morte" já apoiaram no passado a elaboração de testamentos. Mas a mentira fez seu trabalho: uma cortina de diversionismo foi erguida, debilitando o apoio a um plano destinado a salvar vidas.

Num crescendo frenético, as alegações se afastam tanto da realidade que frequentemente ficam parecendo humor negro. A revista de direita US Investors? Daily proclamou que, se Stephen Hawking fosse britânico, estaria condenado a morrer no berço pelo sistema de saúde "socialista". O conhecido físico respondeu polidamente que ele é britânico sim, e "não estaria aqui sem a saúde pública".

A tendência a simplesmente negar os fatos inconvenientes e inventar um mundo de fantasia não é nova; apenas está ficando mais pronunciada. Ganhou enorme impulso nos anos Bush. Quando ficou claro que Saddam Hussein não tinha armas de destruição em massa, a direita americana simplesmente afirmou que elas tinham sido despachadas para a Síria. Quando a evidência científica do papel do homem no aquecimento global se tornou incontestável, alegaram – como disse um congressista republicano – que se tratava da "maior burla da história humana" e os climatólogos eram "mentirosos". Então a mídia americana passou a se dizer imparcial face às "facções rivais", como se ambas dispusessem de evidências a seu favor.

É uma vergonha, pois existem certas áreas em que uma filosofia conservadora – recordando-nos os limites dos grandes esquemas humanos e solicitando cautela – poderia ser um útil corretivo. Mas não é assim que esses conservadores atuam; eles estão inflando uma fantasia histérica que serve de folha de parreira para ferozes interesses econômicos e preconceitos básicos.

Para muita gente na cúpula do Partido Republicano, isso não passa de cínica manipulação. Um ex-assessor de Bush, David Kuo, disse que o seu presidente e [seu conselheiro] Karl Rove mofariam dos evangélicos como "malucos" assim que deixassem a Casa Branca.

Mas o republicano da base acredita nessas coisas. E está sendo induzido a contrariar seus próprios interesses, por meio de falsos temores e demônios inventados. Na semana passada, um dos republicanos enviados para impedir um comício pró-reforma da saúde provocou uma briga, saiu machucado e queixava-se de que não tinha plano de saúde. Eu não achei engraçado; deu vontade de chorar.

Como eles conseguem ficar tão impermeáveis à realidade? Suspeito que a coisa começa na religião. Eles foram ensinados desde crianças que é positivo ter "fé" – o que é, por definição, uma crença sem qualquer evidência para sustentá-la. Você não tem "fé" em que a Austrália existe, ou o fogo queima; você tem evidências. Você só precisa de "fé" para acreditar no inverdadeiro ou implausível. Mas disseram a eles que a fé é a mais elevada das aspirações e a mais nobre das causas. Não admira que isso repercuta em sua postura política. O pensamento baseado na fé se dissemina e contamina o racional.

Até agora, Obama não respondeu devidamente a esse assalto da irracionalidade. Ele montou uma estratégia com dois elementos: conciliar com os interesses da elite econômica; e ridicularizar a franja de fanáticos que se agita. Ele assegurou (vergonhosamente) aos laboratórios farmacêuticos privados que um sistema de saúde pública expandido não usaria o poder de governo para barganhar remédios a preços mais baixos; disse, numa ironia, que não desejava "matar a vovó". Em vez de desafiar esses poderosos interesses e essas bizarras fantasias, ele tentou balujá-los e aplacá-los.

Maníacos desse gênero não podem ser cooptados. Têm que ser confrontados. Em política, às vezes você pode ter inimigos, que devem ser democraticamente derrotados. O sistema político não pode ser obstruído pela necessidade de aproximar até os mais loucos e os mais ávidos. Não há modo de expandir a saúde pública sem encolerizar os grandes laboratórios e republicanos; então, que assim seja. Como observou [a política e colunista californiana] Arianna Huffington, "é como se, no tempo do Movimento dos Direitos Civis, você achasse que tinha de fazer com que Martin Luther King e [o ultradireitista governador do Alabama] George Wallace se entendessem. Não é assim que a mudança acontece."

No entanto, por mais esquisito que pareça, o Partido Republicano está escorregando na direção de um culto bizarro, que vê Barack Obama como um assassino de bebês conspirando para criar listas da morte destinadas aos velhinhos americanos. Seu novo lema poderia ser: "Grite, baby, grite".

Por Vermelho.