Retaliação cruzada no caso do algodão: algumas sugestões para o governo brasileiro

O governo brasileiro tem a oportunidade de quebrar o tabu da inimputabilidade americana no comércio internacional

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O governo brasileiro tem a oportunidade de quebrar o tabu da inimputabilidade americana no comércio internacional

Por Pablo Ortellado 

[caption id="attachment_20590" align="alignleft" width="300"] Aprovação da Lei Agrícola americana renovou os subsídios ilegais e colocou o Brasil novamente na condição de implementar a sanção (Foto: Cyron / CC)[/caption]

Em 2009, o governo brasileiro ganhou a disputa num painel da Organização Mundial de Comércio (OMC) sobre a legalidade dos subsídios que os Estados Unidos ofereciam aos seus produtores de algodão. Para compensar o prejuízo brasileiro, a OMC autorizou uma retaliação comercial de 869 milhões de dólares, que poderia ser distribuída entre produtos e serviços (somando 561 milhões) e retaliação cruzada em propriedade intelectual (somando os 268 milhões restantes). A retaliação cruzada é um mecanismo que permite que se puna com o não pagamento de royalties de propriedade intelectual prejuízos causados no comércio de produtos e serviços. Trata-se de um mecanismo que busca penalizar em situações assimétricas onde a elevação de tarifas de produtos, muitas vezes essenciais, prejudica mais o país que está impondo as sanções do que aquele que as recebe. Embora autorizado duas vezes pela OMC (favorecendo Antigua e Equador), o mecanismo nunca foi posto em prática, porque embora amparado pelas leis do comércio internacional, os Estados Unidos e os países europeus pressionaram para que ele não fosse aplicado.

Quando o Brasil estava prestes a aplicar a retaliação em 2009-2010, os Estados Unidos recuaram e propuseram uma série de medidas compensatórias. No entanto, a recente aprovação da Lei Agrícola americana renovou os subsídios ilegais e colocou o Brasil novamente na condição de implementar a sanção.

O governo brasileiro tem a oportunidade de quebrar esse tabu que é a inimputabilidade americana no comércio internacional. O Brasil pode fazê-lo porque tem dimensão econômica e estatura política. Tem, por isso mesmo, a responsabilidade de fazê-lo de maneira eficaz e inteligente, de maneira a mostrar que descumprimentos das regras do comércio internacional pelos Estados Unidos podem ser sancionados. Se conseguir implementar a retaliação cruzada, o Brasil abrirá um importante precedente que poderá ser explorado por países menores. Por isso é preciso que a retaliação seja muito bem pensada e executada.

Em primeiro lugar, para que a retaliação cruzada tenha efeito político dentro dos Estados Unidos, é preciso que seja uma medida de impacto que cause dano econômico a um setor economicamente relevante, de maneira que esse setor afetado pressione o governo americano. Uma medida como o licenciamento compulsório de um filme blockbuster para exibição nas emissoras públicas brasileiras, tal como foi discutido em 2010, pode ter esse efeito.

No entanto, a autorização para essa retaliação é uma espécie de crédito que o Brasil detém no comércio bilateral e, por isso, deve ser exercido de acordo com os princípios das políticas públicas. Não faz sentido, retaliar os Estados Unidos com a suspensão do pagamento de royalties de produtos da cultura comercial, consumindo esse crédito com produtos cuja democratização não é objetivo da política pública. Os primeiros candidatos de interesse público em matéria de propriedade intelectual são os medicamentos. Mas há também outros candidatos nas esferas das políticas relacionadas a ciência, educação e cultura. Abaixo segue uma pequena lista de sugestões para o governo brasileiro implementar a retaliação cruzada, distribuindo os recursos em políticas de fácil implementação e grande impacto social:

Assinaturas de periódicos científicos – O setor de periódicos científicos é um bom candidato para a retaliação cruzada porque reúne simultaneamente relevância econômica e interesse público. Só o consórcio liderado pelo governo federal gasta mais de 60 milhões de dólares anuais com assinaturas de revistas científicas, boa parte delas de editores nos Estados Unidos (inclusive, a gigante Thomson Reuters). No que diz respeito a demanda, o mercado é concentrado em dois grandes consórcios de universidades, o que facilitaria a implementação da medida.

Dicionários inglês-português – Aplicar a retaliação no setor de livros é uma operação um pouco complexa, devido ao problema da língua. Como as traduções também têm direito autoral (normalmente de titularidade nacional), não é possível reimprimir livros americanos já traduzidos por meio de licenciamento compulsório. Por outro lado, imprimir livros americanos sem tradução atinge um público muito reduzido. Uma opção a ser explorada é a impressão e distribuição de dicionários inglês-português por meio do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). O Ministério da Educação poderia imprimir o livro e distribuí-lo junto com os demais livros do PNLD. Esses dicionários poderiam apoiar o ensino de inglês, constituindo uma valiosa adição aos programas de distribuição de livros didáticos que, até hoje, distribuíram apenas dicionários de português.

Distribuição de uma seleção criteriosa de produtos culturais americanos– No campo das políticas culturais, uma possibilidade a ser explorada seria a produção massiva de caixas com álbuns musicais ou filmes clássicos, selecionados por especialistas, para a distribuição em centros culturais, bibliotecas, escolas e universidades. O governo federal (Ministério da Cultura) poderia assumir os custos da produção industrial e, como no caso dos livros e das assinaturas de periódicos, os valores referentes aos royalties seriam abatidos do crédito brasileiro.

Todas as três medidas têm o mérito de serem simples e facilmente mensuráveis, já que existe um custo de licenciamento estabelecido para esses produtos. Medidas como essas atingiriam atores econômicos relevantes, causando incômodo político para os Estados Unidos, obtendo o duplo resultado de punir e forçar o país a cumprir as regras da OMC. Além disso, poderiam ter impacto positivo no desenvolvimento de políticas brasileiras nas áreas da ciência, educação e cultura.