Revolução no Egito completa um ano

Releia matéria publicada na edição da Fórum de março de 2011, que trouxe a cobertura, direto do Cairo, do processo que teve início em 25 de janeiro do ano passado e derrubou o ditador Hosni Mubarak

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Releia matéria publicada na edição da Fórum de março de 2011, que trouxe a cobertura, direto do Cairo, do processo que teve início em 25 de janeiro do ano passado e derrubou o ditador Hosni Mubarak

Por Adriana Delorenzo e Renato Rovai

A narrativa de uma revolução anunciada

Com 82 milhões de habitantes e posição geopolítica estratégica, o Egito viveu entre os dias 25 de janeiro e 11 de fevereiro um processo de mobilização social que pode mudar a história de sua participação política no plano internacional e ao mesmo tempo contribuir para um novo tempo nos países islâmicos

Por Adriana Delorenzo e Renato Rovai, do Cairo 

Dia 31 de dezembro. Cerca de mil fiéis católicos, minoria religiosa no país, foram à Igreja de al-Qiddissin, em Alexandria, assistir à missa de Ano Novo. De repente, uma explosão. “Tudo o que pude ver foram partes de corpos espalhadas por todos os lugares”, relatou à época de um leito de hospital, em entrevista para a Associated Press, Marco Boutros, um jovem de 17 anos. O resultado da tragédia foi 24 mortos e 90 feridos. O presidente Hosni Mubarak convoca uma cadeia nacional e faz um discurso emocionado para o país. Entre outras coisas, diz que “este ato pecaminoso é parte de uma série de esforços para dividir cristãos e muçulmanos”. E acrescenta que o povo egípcio tinha sido alvo de um “terrorismo que não conhece nem pátria nem religião, de uma operação que carrega em si a marca das mãos dos estrangeiros, que querem transformar o Egito num Estado terrorista”. A mídia do Ocidente repercute a história como mais um provável ataque estimulado pela Al-Qaeda.

No dia 24 de janeiro, véspera do Dia da Polícia, feriado nacional, Hosni Mubarak e seu ministro do interior, Habib El-Adly, vão ao encontro do alto escalão da corporação. Em 25 de janeiro, celebra-se no Egito a vitória contra as tropas britânicas, em 1952, numa batalha em que a polícia do país se juntou à população para derrotar os invasores. Mubarak se repete e ataca forças estrangeiras. El-Adly vai além e diz que o “Exército Islâmico Palestino, que tem ligações com a Al-Qaeda, está por trás do ataque à Igreja de al-Qidissin”.

Mubarak e El-Adly protagonizavam mais uma das óperas bufas típicas dos regimes ditatoriais. Investigações independentes já apontavam o mesmo ministro como principal suspeito pela explosão da igreja, numa armação parecida com a do atentado do Riocentro, em 1981. El-Adly planejou a ação para trazer terror ao país e contar com o apoio do Ocidente nos enfrentamentos que ele imaginava que o Egito viveria num futuro próximo. Segundo Laywer Ramzi Mamdouh, que apresentou representação à Justiça egípcia sugerindo investigação, há indícios de que o “ex-ministro do Interior havia arquitetado o ataque mortal à Igreja com a intenção de culpar os islâmicos, escalar a repressão do governo sobre eles, e ganhar o reforço do apoio ocidental ao regime”. E o Ocidente repercutiu a versão do governo ditatorial sem questioná-la.

Mas antes mesmo do dia 25 de janeiro, na internet, as suspeitas já levavam milhares de pessoas a exigirem a demissão imediata de El-Adly. E o Dia da Polícia não era tratado como momento para celebrações, mas de luta. Diversas redes sociais divulgavam manifestos, convocando a população a ir às ruas para reivindicar seus direitos e denunciar abusos policiais. Uma comunidade do Facebook destacava-se das demais, era a “We are all Khaled Said” (Somos todos Khaled Said). Aos 28 anos, no dia 6 de junho de 2010, Khaled foi brutalmente assassinado pela polícia do Egito por ser suspeito de divulgar na internet vídeos de violência policial.

As principais reivindicações divulgadas num manifesto que circulava intensamente naqueles dias a partir de grupos que articulavam o protesto, formados especialmente por jovens, eram: aumento do salário mínimo para 1.200 libras egípcias, o equivalente a 350 reais; criação de um seguro-desemprego; cancelamento do estado de emergência no país, que garante que a polícia aja sem necessidade de respeitar a legislação; demitir Habib El-Adly e libertar todos os detidos sem ordem judicial; dissolver o Parlamento e convocar nova eleição presidencial; e, por fim, emendar a Constituição permitindo apenas dois mandatos para os futuros presidentes eleitos.

Em conjunto com o manifesto, os organizadores pediam a confirmação na participação do protesto. Dias antes do protesto, aproximadamente 50 mil, apenas membros da comunidade “Somos Todos Khaled Said”, afirmavam que se juntariam ao evento. Mas não havia um local determinado. Os apoiadores do ato pediam para que as pessoas saíssem pela manhã com amigos e fossem caminhando com faixas, bandeiras do país e cartazes. E que convidassem outras a fazer parte do grupo e se dirigissem para um local onde pudessem encontrar mais gente. Evidente que qualquer cidade tem sua praça principal. Esse era o local que não precisava ser divulgado. E para onde todos seguiram nas diferentes cidades do Egito. Em especial no Cairo, onde se calcula que 40 mil pessoas tenham ido à Praça Tahrir naquele 25 de janeiro.

Laila Baza, 30 anos, cientista política, trabalha numa ONG que atua em favelas da capital do Egito e acolheu o chamado da comunidade. “Fui uma das pessoas que ficou sabendo do dia da Revolução pela “Somos todos Khaled Said”. Comecei a segui-la porque a maioria dos que participavam dele não era de grupos políticos. Eram pessoas comuns da sociedade. Claro que alguns já tinham tido participação política, mas a maioria, não”, relata.

Como muitos que foram à Praça Tahrir, naquele 25 de janeiro, Laila também não pretendia fazê-lo. “Na verdade, tinha decidido não ir. Mas acordei achando que precisava participar. Fui à praça e fiquei por lá entre quatro e cinco horas. Fiquei surpresa ao vê-la lotada. Antes, em todas as manifestações que tinha ido, havia poucas pessoas, no máximo 500”, relembra.

Laila confirma a história de não haver um ponto anunciado para as manifestações. “Não existia um plano para a revolução nem para as pessoas se encontrarem. O ponto final não foi anunciado. Fui para a Tahrir porque na verdade não sabia onde os manifestantes iriam se encontrar. A decisão de irem para a praça veio como uma reação do dia. Não foi nada planejado antes.”

Há muitas questões ainda a serem estudadas e compreendidas no movimento que derrubou Mubarak no Egito, que pode estar construindo uma nova forma de participação política, muito mais direta e menos representativa. E que tem muito a ver com as possibilidades de construção de rede e interação que a internet permite. O movimento que derrotou o ditador egípcio contou com a participação de lideranças de movimentos políticos e ativistas, mas a sua base social foi diferente das tradicionais. E a forma rápida como transformou cidadãos comuns em ativistas, também.

Shareer Sherif, estudante de engenharia, 23 anos, distribuía panfletos na Praça Tahrir quando a revolução completava seu primeiro mês, no dia 25 de fevereiro. O panfleto, que ele mesmo tinha produzido “a partir de uma busca rápida de 20 minutos no Google”, denunciava que no governo 80% dos ministros tinham relação com o Partido Democrático Nacional, de Mubarak, mesmo com as alterações de gabinete que haviam sido realizadas naquela semana pela junta militar que governava o país.

“Eu não tenho nenhuma ideologia, não sou de qualquer partido, mas quero o Egito livre. No dia 25 de janeiro foi a primeira vez que participei de algo político. A maioria dos meus amigos – eu venho de uma família classe média – não se preocupa muito com o que acontece no país, alguns apoiam, outros não, mas poucos se envolvem. Decidi vir fazer a minha parte”, diz Sherif. E você se considera um ativista hoje? “Sim e estou orgulhoso de ser um ativista pelo meu país.” Ele ainda relata que comemorou seu aniversário na Praça Tahrir. “Completei meus 23 anos aqui, com o povo. Vim todos os dias por três semanas seguidas para os protestos. Fui testemunha da violência que houve aqui, vi pessoas mortas, vi gente ferida, tudo foi chocante e transformou minha vida.”

A violência também chocou a egípcia Marwa Mohamed, de 27 anos, que vive em um apartamento próximo à Praça Tahrir. De sua janela, ela foi testemunha de tudo o que acontecia e ficou sem coragem para descer, embora estivesse torcendo pelo movimento. “Vi muitas pessoas morrerem da janela do meu apartamento, na frente dos meus olhos, chorei muito”, diz. Após a queda de Mubarak, ela foi à Praça para comemorar e demonstrar solidariedade aos povos dos países vizinhos que também enfrentam a repressão de longas ditaduras. “Queremos democracia e liberdade no Egito, mas também na Líbia e em todos os países árabes.”

Dia 28, assassinatos e apagão da internet

Depois do grande ato do dia 25 e da violência ocorrida nas ruas, o movimento decidiu continuar os protestos e passou a pedir o fim do governo Mubarak. O sucesso da Revolução na Tunísia animava os egípcios, mas ao mesmo tempo se sabia que o jogo no país seria mais duro e complexo. Havia muita cumplicidade entre os países centrais do Ocidente e Mubarak. Por isso, as primeiras reações dos governos dos EUA e da Comunidade Europeia foram de “preocupação” e sustentação do ditador egípcio. A secretária de Estado do governo Obama, Hillary Clinton, afirmava: “Acreditamos que o governo egípcio é estável e está estudando maneiras de responder às necessidades e interesses legítimos de seus cidadãos”. Reação bem diferente da que os EUA tiveram posteriormente contra países não tão alinhados, como a Líbia.

A sexta-feira, dia 28, foi a data marcada pelo movimento para um novo grande ato de protesto. Mubarak decidiu usar todas as suas armas para sufocar as manifestações naquele dia. Grande parte das ocorrências na Revolução – 365 pessoas assassinadas e 5.500 feridas –, segundo o ministério da Saúde do Egito, se deu no dia 28 de janeiro. A polícia cercou as praças onde havia manifestantes e atirou contra a multidão. Fez isso tanto no Cairo, como em Alexandria, Suez e outras cidades médias e grandes.

Mohmoud Abdo, 24 anos, ex-policial, que participou do movimento nas ruas e no Facebook, divulgando a violência praticada pela polícia para a qual já trabalhou, lembra que a tática era de clara intimidação. “Naquele dia, a ação foi para sufocar o movimento e ao mesmo tempo buscar colocá-lo contra a maioria da população.” Seu amigo Ahmed Mustafa, 24 anos, empresário do setor hoteleiro, e que participa do mesmo grupo de ativistas na internet que Abdo, lembra que naquele dia o governo libertou aproximadamente 6 mil presos das cadeias e estimulou-os a transformar o Egito num caos. “Isso assustou as pessoas, porque era evidente que parecia haver um certo caos no país.”

Mustafa também recorda que a mídia nacional foi utilizada para criar o clima de descontrole total. “Eles apresentavam pessoas dizendo que tinham tido suas casas invadidas, que suas filhas tinham sido violentadas, que estavam com medo, que desejavam que tudo acabasse, que não queriam mais esses protestos.” Neste mesmo dia, Mubarak foi à TV depois de atrasar duas horas em relação ao horário marcado para seu pronunciamento, anunciar que estava mudando os ministros do seu governo, mas ressaltou que havia diferença entre liberdade e caos, e defendeu a ação da polícia. "Não serei tolerante. Seguirei os passos para manter a segurança dos egípcios. Esta é a responsabilidade que assumi", disse o ex-presidente.

Neste mesmo dia Mubarak ordenava o apagão da internet e dos celulares, e deixava os egípcios completamente ilhados. Ahmed Bahgat, 34 anos, advogado de formação que se tornou ativista cibernético, relembra que nada funcionava e que neste momento eles começaram a pedir aos amigos que estavam fora do país para que narrassem os acontecimentos na internet a partir dos relatos que eles transmitiam via telefone convencional.

A socióloga Laila também se recorda da angústia vivida no dia 28. “Quando o governo bloqueou o acesso à internet, pensei, ‘amanhã será um dia de desastre’. Achei que eles tivessem um plano para matar todas as pessoas, ou fazer alguma coisa. E sem internet ninguém saberia o que estava acontecendo no Egito.” Ela repetiu o mesmo procedimento de Bahgat. “Eu e meus amigos passamos a ligar para os que moram fora do país pedindo que contassem o que estava acontecendo aqui.”

Após os confrontos e as angústias do dia 28, à noite vários postos policiais e sedes do Partido Democrático Nacional (NPD) foram atacados. E a polícia saiu das ruas. “Nós não esperávamos que no final do dia a polícia iria deixar as ruas em todo país. Ninguém esperava isso”, conta Laila. Há quem avalie hoje que a ação contra as delegacias e as sedes do NPD foi de autossabotagem. O governo apostava que o discurso de Mubarak, adicionado à libertação de prisioneiros, além da retirada do policiamento das ruas, iriam produzir um caos no país, que permitira o retorno da ação repressora a partir de um clamor popular. Além dos prisioneiros soltos, Mubarak e seus ministros haviam contratado grupos de mercenários para agirem na destruição de patrimônio público e histórico do país. Mas o povo deu uma resposta rápida. Armou barricadas em frente aos principais museus e prédios do Estado para impedir ações de depredação. Ao mesmo tempo, organizou um esquema de autossegurança e nas manifestações das praças todos que chegavam eram revistados por grupos de voluntários que se revezavam nos postos de entrada. “O egípcio é diferente. Nós não queríamos uma guerra aqui. Achávamos que era hora de o governo mudar, mas queríamos a mudança de forma pacífica, quem dificultou as coisas foi o governo”, explica Saad Zaki, guia turístico há 21 anos.

Ele, apesar de ter participado do movimento que derrubou Mubarak, é condescendente com o ex-presidente, assim como muitos egípcios. “Os problemas eram a mulher e o filho. Se ele não tivesse sido tão influenciado, seria melhor”, pondera. O jovem Amr Fouad, que também participou dos protestos na rua e da divulgação na rede mundial, diz que se Mubarak tivesse dialogado com a população já no dia 25 ou 26 e não tivesse colocado a polícia para matar as pessoas, não haveria problema de que ele continuasse até o fim do seu mandato na presidência. “Ele era nosso presidente, representava o Egito fora daqui, acho que deveríamos dar a chance de ele terminar o governo, mas ele demorou muito para nos atender”, acredita.

Mubarak quase convence o povo

No dia 1º de fevereiro, Mubarak acertou no tom e fez um discurso dizendo que não sairia candidato na próxima eleição, em setembro, prometeu reformas constitucionais e encerrou a fala com a seguinte frase: “Esse é o meu país e eu quero morrer aqui”. “Muitas pessoas ficaram realmente muito sensibilizadas com ele naquele dia, cheguei a pensar que o movimento iria perder força”, lembra Laila.

Alguns manifestantes ponderavam que talvez fosse melhor encerrar os protestos naquele momento. O sociólogo Mohamed Elagati (entrevista na pág XXX) explica que, se no dia 28 o povo derrotou a polícia, no dia 2 teve que derrotar a mídia. “Não podíamos aceitar aquilo, nós tínhamos dado uma chance de 30 anos para ele mudar as coisas aqui e ele prometia de novo, como poderíamos acreditar nele?”, questiona o jovem Shareer Sherif. A imprensa incorporou a estratégia de Mubarak e tentou por um lado convencer a população que o fato de o presidente ter se comprometido a sair do governo em setembro era uma vitória do movimento e que agora era hora de o país voltar à normalidade.

Mas o discurso de Mubarak não era sincero e fazia parte de uma estratégia de acuar os opositores para, depois de desmobilizá-los, voltar a reinar. E a estratégia ficou clara para a maioria da população quando, sem a polícia nas ruas e com o exército cercando a Praça Tahrir, no dia 2 de fevereiro, o país assistiu a uma das cenas mais chocantes dos 18 dias de movimento. Manifestantes pró-Mubarak sobre cavalos e camelos entraram na praça e distribuíram chicotadas e pauladas nas pessoas que lutavam pela queda do presidente. Neste dia, estima-se que mais de 1.500 pessoas tenham ficado feridas.

Ativistas dizem que o Exército poderia ter evitado a entrada dos apoiadores de Mubarak na Praça, mas, ao contrário disso, fez de conta que nada acontecia. Por isso, entre os ativistas, boa parte teme pelas posições que as Forças Armadas possam vir a tomar no futuro. Mas entre a maioria da população a desconfiança não existe. Ao contrário, nas ruas são comuns cenas de populares tirando fotos nos tanques que ainda permanecem espalhados pelos principais pontos do Cairo. “Hoje estamos juntos, exército e povo. Somos uma coisa só”, afirma Ahmed Mustafa, o jovem empresário do ramo hoteleiro.

Se a intenção de Mubarak era intimidar os manifestantes com a ação de policiais à paisana invadindo a Praça Tahrir montados em camelos e cavalos e espancando o povo, o efeito produzido foi exatamente o contrário. Por um lado, as cenas ampliaram a revolta do ponto de vista interno e tornaram os protestos ainda mais fortes. Por outro, ao correr o mundo, essas cenas mostraram a cara bruta de seu governo, que enquanto produzia um apagão de celulares e internet, colocava capangas para espancar manifestantes.

Mubarak teve que recuar e começar a restabelecer as comunicações no país porque os resultados do ponto de vista internacional passaram a ser desastrosos para a sua tentativa de continuar no poder como homem de confiança do Ocidente. Além do fato de ter calado a internet, o governo prendera jornalistas de redes internacionais, incluindo uma equipe da TV Brasil. E mantinha o gerente do Google no país, Wael Ghonin, preso e incomunicável, em razão de ele ter sido um dos ativistas a criar a página no Facebook “Somos Todos Khaled Said”.

Os últimos lances de uma queda anunciada

No dia 2, a internet foi parcialmente restabelecida, mas os ataques aos manifestantes continuaram, aumentando o número de mortos e feridos. Mandouh Al Habashi, vice-presidente do Fórum Mundial das Alternativas, que estava em Dacar, no Senegal, participando do FSM quando foi anunciada a renúncia de Mubarak, afirmou que, desde o dia 2, já se sabia que Mubarak não tinha mais condições de permanecer no cargo.

A pá de cal, no entanto, foi a entrevista que o gerente do Google, Wael Ghonin, deu à rede privada Dream TV, no dia 7, depois de ter ficado 12 dias preso e com os olhos vendados. Ghonin, ao ser perguntado sobre o que sentia ao saber que de alguma forma a sua ação de criar a comunidade que gerou os protestos havia levado muitos jovens a perderem a vida, começou a chorar de forma compulsiva. A entrevista gerou uma comoção nacional e as manifestações do dia 8 foram imensas.

Nas praças tudo era auto-organizado, desde a ocupação, passando pela segurança e a limpeza, até a inscrição dos oradores que utilizavam os palanques improvisados em alguns pontos. Criou-se um mecanismo que permitia que todos que quisessem pudessem falar, bastava encarar uma fila e respeitar o tempo. “Apesar dos confrontos com a polícia, na Praça Tahrir tudo era colaborativo e solidário”, disse Nour Kamel, publicitária de 23 anos. Ela lembra que o primeiro protesto político de sua vida, o do dia 25 de janeiro, deixou sua família muito preocupada. “Fui sozinha e sempre fui tratada com muito respeito, as pessoas aprendiam e ensinavam umas com as outras”, afirma. “Todos estavam lutando pelo que realmente queriam.”

Do dia 8 em diante a pressão internacional começa a aumentar e o povo não sai das ruas. O presidente dos EUA, Barack Obama, faz um pronunciamento “pró-democracia” e declara que o povo pedia mudanças no Egito, indicando que a era Mubarak chegara ao fim. Mas o ditador ainda tenta uma cartada final. No dia 10, em mais um discurso com tom emocional, reafirma o compromisso de passar o poder em setembro para quem fosse eleito. Além disso, disse que entregava parte de seu poder ao vice, Omar Suleiman. O povo nas ruas passou a gritar “fora Mubarak, fora Suleiman”. O Egito não aceitava mais Mubarak. Não aceitava mais o regime que ele representava.

Encruzilhadas do futuro

No dia 11, os egípcios conquistaram a primeira etapa de sua almejada liberdade rumo à democracia. Mubarak renunciou, deixando o poder a cargo do Conselho Supremo das Forças Armadas. Mas a história não para por aí. Uma semana após a queda do ex-presidente, milhares de pessoas lotaram novamente a Praça Tahrir. Duas semanas depois da renúncia, o protesto se repetiu. Embora este estivesse lotado, com uma multidão, os manifestantes avaliavam que havia muito menos gente do que na semana anterior. “Hoje há aproximadamente 15% de pessoas do que havia na semana passada”, lamentou Ahmed Bahgat no dia 25 de fevereiro.

Continuar a mobilização não é algo fácil. Os egípcios se dividem entre os que acham que a revolução não acabou e os que consideram que é hora de acalmar. “Mubarak caiu, mas não significa que o sistema mudou, por isso estamos aqui”, disse Nour Kamel. Já o diretor de uma agência de turismo, Essam El Grammal, afirmou à Fórum não ver mais sentido nos protestos todas as sextas-feiras. “Parece uma festa, um carnaval, entretanto temos muito trabalho pela frente”, comentou ele, que se dizia feliz pela vitória, mas angustiado com a paralisia do setor em que trabalha.

As sextas-feiras, desde o dia 28 de janeiro, apelidada de “sexta-feira da ira”, têm sido dias de luta no Egito. Esse dia da semana é sagrado para os muçulmanos, destinado à oração e ao descanso. No país, 90% da população é muçulmana e 10%, cristã. Durante os protestos, todos estiveram unidos. “Estamos lutando pelos direitos de todos os egípcios, independentemente de serem cristãos ou muçulmanos”, define Shareer Sherif, que é cristão e diz que nunca sentiu preconceito contra sua opção religiosa. “Quem estimulava a divisão era Mubarak e seu governo.”

Para ele, todo esse movimento o fez descobrir que é preciso lutar pela liberdade: “Essa revolução me fez descobrir que muitas pessoas que eu conheci na minha vida queriam liberdade, mas não queriam fazer qualquer esforço para conquistá-la.” Ele faz parte do grande número de pessoas que acha que ainda é necessário continuar o movimento.

As Forças Armadas têm afirmado que ficarão à frente do país até setembro, quando propõem que haja nova eleição. Os grupos mais ligados à sociedade civil, no entanto, defendem que o governo de transição seja de pelo menos um ano, porque o país precisa de tempo para que eleições livres e democráticas sejam organizadas. Além disso, o primeiro gabinete nomeado pelo chefe do Conselho Supremo Militar do Egito, Mohamed Hussein Tantawi, não agradou os ativistas que lutaram para derrubar Mubarak. No protesto da sexta-feira, 25, dezenas de milhares de manifestantes cobravam mudanças, por não se conformarem com o fato de a maioria dos ministros ser ligada ao Partido Democrático Nacional. “Nós queremos tecnocratas egípcios e ainda exigimos a punição de todos que participaram do massacre que ocorreu nesta praça”, defendeu Salma Said, 25 anos. “Espero que o povo continue lutando contra todas as injustiças”, completou.

Os manifestantes também exigiam a imediata supressão da lei de emergência, em vigor há 30 anos, e que é renovada a cada três. A lei permite à polícia prender sem autorização judicial, legaliza a censura e proíbe manifestações de rua e atividades políticas. Ativistas estimam que 17 mil pessoas tenham sido detidas com o respaldo da lei e 30 mil, executadas durante o período Mubarak. Khaled Said foi mais uma das vítimas. A liberdade de todos os presos políticos também faz parte das reivindicações dos que ainda exibem faixas e cartazes na Praça Tahrir.

Nesse contexto de ditadura, a internet foi uma brecha para que as pessoas pudessem se organizar, rompendo a censura e a falta de liberdade. “O Facebook foi o primeiro espaço onde pudemos nos juntar e conversar”, explica o estudante de administração, Mohamed El Kholi. “Era proibido protestar ou falar qualquer coisa contra o governo nas ruas, não podíamos discutir o que acontecia em nosso país.” Ele, junto com seu amigo Mohamed El Sayed, estudante de Farmácia, foram às ruas desde o dia 25 de janeiro justamente para lutar contra o que ocorria. “Não fazemos parte de nenhum grupo. Essa revolução não é de um partido, não há um líder”, explica.

Os anos de repressão, em meio à crise econômica, desemprego e falta de serviços públicos de qualidade, fizeram despertar uma geração de novos ativistas no Egito. “Não é difícil para ninguém se tornar um ativista no Egito, nosso país enfrenta muitos problemas econômicos, sociais e políticos”, diz Fatima Fowsi Al-Ali, estudante de Antropologia. “Não queremos continuar vivendo com 40% da população abaixo da linha de pobreza.”

A revolução no Egito ainda não é uma história completa. Esta reportagem para Fórum foi finalizada na noite do dia 27 de fevereiro, do Cairo. Quando ainda ocorria um braço de ferro entre os manifestantes que continuavam os protestos e o governo provisório que controlava o país.

As primeiras propostas de mudanças constitucionais, que precisariam ser aprovadas em um referendo convocado pelo Conselho Militar, começavam a ser anunciadas. Entre elas, estava o limite de dois mandatos de quatro anos para os futuros presidentes, que não poderiam ter pai ou mãe estrangeiro, nem ser casados com alguém de outra nacionalidade.

Além de a história do Egito não ter chegado ao seu final (e nem a da Tunísia, onde tudo começou), as indicações eram de que a primavera islâmica continuaria. Na Líbia, Kadafi estava prestes a ser deposto. E os protestos avançavam no Bahrein, na Argélia, no Iêmen, no Irã, no Marrocos, entre outros países. Alguns, aliados dos EUA e de Israel. Outros, nem tanto. Algo que pode significar muito do ponto de vista da geopolítica internacional, mas que importa pouco para aqueles que clamam por liberdade e direitos sociais. E tem sido esse o combustível das lutas desta região do mundo.