Sartre e o golpe de 1964

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Em trecho de "Sartre: direito e política", o jurista Silvio Luiz de Almeida resgata uma análise do filósofo francês sobre democracia, capitalismo e o golpe militar no Brasil. "Antes das quimeras da legalidade, o que queremos são as flores da justiça. Flores delicadas, que não podem ser plantadas e colhidas apenas por nós e entre nós, mas, sim, pelas mãos de todos os explorados, seja no Brasil, seja na América Latina, seja na África, seja em qualquer outra parte do globo. A luta pelos injustiçados, assim, 'não é somente nosso dever, mas nela está nosso interesse, nossa liberdade'”. Leia  Por Silvio Luiz de Almeida (*), em "Sartre: direito e política" SOBRE O DIREITO E A DEMOCRACIA NO BRASIL Sartre chama atenção para a contradição entre democracia e capitalismo em um texto de 1970, sugestivamente intitulado “O povo brasileiro sob o fogo cruzado dos burgueses”. Demonstrando um conhecimento profundo sobre nossa realidade e nossa história, o autor tece alguns comentários sobre o regime ditatorial implantado no país após o golpe de Estado de 1964. Sartre comenta o que, em sua opinião, foram equívocos da esquerda nacional: o apoio a uma chamada “burguesia nacionalista” e a defesa de uma economia “autônoma”, contrária às forças imperialistas. Para ele, “não há uma boa burguesia, que seria nacionalista, e uma má, que seria cúmplice de um imperialismo. Não há mais que uma só burguesia, cuja atitude varia em função de seus interesses do momento”. Desde os idos da colônia, o Brasil tem sido conduzido na direção do capitalismo, com uma produção inicialmente voltada para o exterior. Isso impediu a formação de um patamar mínimo de direitos, já que a falta de circulação mercantil interna não gerou uma “equivalência jurídica”. Sem as garantias legais de cidadania – liberdade e igualdade –, essenciais no processo de troca mercantil, a superexploração do trabalho tornou-se prática corrente, primeiro, com a mão de obra escravizada de negros e indígenas, depois, com os maus-tratos e a repressão aos trabalhadores livres. O resultado disso é que os ditos “direitos de cidadania” apenas recentemente e de forma débil começaram a ser objeto de efetiva discussão no país. Por isso, Sartre lembra que a “burguesia nacionalista” sempre se apoiou na pauperização crescente do povo brasileiro e na exploração atroz do trabalho. O avanço econômico experimentado a partir dos anos 1930 e, depois, nos anos 1960 foi mantido por um regime de constante opressão. Não é por acaso que o governo de Getulio Vargas foi marcado por uma forte repressão política52, culminando inclusive com a clandestinidade do Partido Comunista brasileiro. Posteriormente, o “milagre econômico” deu-se em plena ditadura militar. Ora, o que o filósofo quer dizer é que a “burguesia nacionalista” esteve na proa desses dois momentos que misturaram prosperidade econômica e repressão política. Com o empobrecimento do país em decorrência da política econômica “desenvolvimentista” e concentradora de renda, o Brasil tornou-se presa fácil para o imperialismo estadunidense. De acordo com Sartre, a crise político-econômica deflagrada em 1961, que, três anos depois, acarretaria o golpe militar, já se anunciava desde o fim do primeiro período do governo Vargas, em 1945, no embate travado entre as frações da burguesia brasileira (uma, nacionalista; outra, vinculada ao imperialismo, defensora de um modelo de abertura ao capital estrangeiro). O certo é que essa crise permitiu aos militares, sem dificuldades, dar o golpe e derrubar a frágil “democracia sem povo”, contando com o apoio da burguesia (e com a benção e até “algo mais dos Estados Unidos”, como diz o autor). É sugestiva a nomeação do protesto burguês contra as reformas de base anunciadas pelo presidente deposto João Goulart como “Marcha da família com Deus pela liberdade”: prova de que a estratégia de apostar na “crise moral” não começou nos tempos trágicos do neoliberalismo. Sartre lembra que o golpe militar de 1964, saudado por muitos como a preservação da unidade nacional diante dos perigos do comunismo, resultou em várias medidas econômicas que obrigaram as empresas brasileiras a se associar ao capital estrangeiro, o que coincidiu com o interesse dos países industrializados em transferir parte de suas linhas de produção para nações semi-industrializadas, como o Brasil. Os regimes autoritários são essenciais para retirar possíveis oposições de burgueses relutantes ou de trabalhadores descontentes, revelando que os exércitos se preparam menos para inimigos exteriores do que para reforçar a opressão em território nacional. Diz o filósofo: “O imperialismo e a burguesia não encontraram outro momento melhor de entregar-se ao maior saque possível do Brasil, e para o governo foi a ocasião de manter o povo em estado de mínima resistência e de organizar, portanto, uma constante repressão”. As “duas burguesias” se reconciliaram, o que, para o filósofo, prova que na realidade “só existiu uma, mas com interesses flutuantes”. É importante mencionar outro fato revelador dessa terrível contradição da democracia burguesa: democratizado, o país se recusa a prestar contas às vítimas de um regime que, hoje, o próprio Estado brasileiro reconhece ter sido ilegal e antidemocrático. Mesmo quando o Estado é liderado por governos “democráticos”, não são poucas as dificuldades para que haja indenização das famílias de mortos e desaparecidos políticos, para a punição de torturadores e também para o reconhecimento e a publicização dos crimes cometidos pelos agentes estatais durante a ditadura militar. As justificativas para a recusa são várias, sobretudo jurídicas. A Lei de Anistia5é a maior delas; isso, em vez de comprovar o pretenso caráter consensual do direito, demonstra a violência com as famílias das vítimas e com o povo brasileiro, que ainda sente os efeitos de um regime autoritário. Por um lado, as torturas tão comuns nas delegacias de polícia, nos quartéis militares e até em ambientes de trabalho e, por outro lado, a repressão brutal às greves e a impunidade contra atos violentos cometidos por agentes do Estado são heranças de uma ditadura que está viva entre nós, que habita o coração de cada homem, que desfaz cotidianamente os sonhos de justiça do povo brasileiro. A indiferença do jurista em relação a esse cenário é a demonstração de que uma sociedade livre ainda não vicejou entre nós, e isso não acontecerá até que a busca do justo vá além dos códigos ou dos discursos em defesa da legalidade. É dessa busca que Sartre sempre falou: a ação política libertadora. Quando a crítica pretende livrar-nos dos grilhões imaginários do direito, de modo nenhum significa substituí-los pela realidade da opressão. Significa tão somente que somos livres para dar sentido ao mundo e que toda realidade é humana. Significa que, antes das quimeras da legalidade, o que queremos são as flores da justiça. Flores delicadas, que não podem ser plantadas e colhidas apenas por nós e entre nós, mas, sim, pelas mãos de todos os explorados, seja no Brasil, seja na América Latina, seja na África, seja em qualquer outra parte do globo. A luta pelos injustiçados, assim, “não é somente nosso dever, mas nela está nosso interesse, nossa liberdade”. (*) Silvio Luiz de Almeida é natural de São Paulo, capital. Jurista e filósofo, é doutor em filosofia e teoria geral do direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Largo São Francisco) Ficha Técnica  Título: Sartre: direito e política Subtítulo: Ontologia, liberdade e revolução Autor: Silvio Luiz de Almeida Apresentação: Alysson Leandro Mascaro Prefácio: Franklin Leopoldo e Silva Número de páginas: 240 Preço: R$ 57 ISBN: 978-85-7559-498-8 Editora: Boitempo Editorial Para comprar, clique aqui