Séculos de folia e insurreições

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Sem cerco, taxa nem aperto, uma das maiores festas populares do Brasil é puxada pelo som do frevo, intimamente ligado à formação de Pernambuco e do próprio Brasil

Por Por Sofia Fernandes e Julinho Bittencourt   Ariano Suassuna chega na sua seção eleitoral, no Recife, nas eleições municipais de 2000, para votar no petista João Paulo Lima e Silva. Entra na escola com o braço erguido e os punhos cerrados, cercado por amigos e admiradores. Todos cantam, aos brados e numa grande folia, o frevo de Capiba “Madeira que Cupim Não Rói”: “Queiram ou não queiram os juízes / O nosso bloco é de fato campeão / E se aqui estamos, cantando esta canção / Viemos defender, a nossa tradição / E dizer bem alto que a injustiça dói / Nós somos madeira de lei que cupim não rói”. Na ocasião, João Paulo é eleito o primeiro prefeito operário da história do Recife. No mesmo ano e com os mesmos rituais, Ariano apóia a campanha de Luciana Santos (PCdoB) para a vizinha Olinda. Ela toma posse como a primeira prefeita comunista do Brasil. Quatro anos depois, os dois são reeleitos com votação consagradora. De certa forma, a mesma cena se repete nos âmbitos estadual e federal. Em 2006, o escritor e dramaturgo, sempre acompanhado do frevo emblemático, apóia, canta e enaltece a vitória esmagadora do socialista Eduardo Campos para o governo do estado de Pernambuco. Canta novamente em 2006, assim como havia feito em 2002, para a chegada do primeiro homem do povo à presidência da república, o pernambucano Lula. Mestre Ariano simbolicamente devolve, através da canção atrevida, ao povo o que lhe é de direito. E mesmo que Ariano não o fizesse, quem já passou algum carnaval por aquelas bandas sabe perfeitamente que seria desnecessário. Durante as festas, o povo toma as ruas, enlouquecido de prazer, como nenhum outro do país, na maior reunião sem cordas nem cordões de que se tem notícia. E, só pra quem possa duvidar, lá vai pela avenida dançando o prefeito João Paulo, se for no Recife; a prefeita Luciana, se for em Olinda. Os dois, sem segurança e nem isolamento, fervendo e frevando, Pernambuco sob seus pés. Enquanto em outros estados do país a festa é cercada, taxada, apartada e enclausurada nas arquibancadas, em Pernambuco ela se mantém nas ruas. Nas calçadas, ruas, vielas e becos, se amontoam praticamente todos os tipos étnicos que formaram o estado e também o país. Foi naquele mesmo chão que, a partir de 1640, durante a Insurreição Pernambucana (a Guerra da Luz Divina), talvez tenha surgido o primeiro indício do nacionalismo brasileiro. Em torno da expulsão dos invasores holandeses se irmanaram o senhor de engenho André Vidal de Negreiro, o afrodescendente Henrique Dias e o indígena Felipe Camarão. Oito anos depois, a primeira das Batalhas dos Guararapes, decisivas na Insurreição, foi considerada simbolicamente a origem do exército brasileiro. Mais 15 anos adiante e a história da Capitania de Pernambuco pôde comemorar em silêncio o nascimento de Zumbi dos Palmares. Na Serra da Barriga, no município de União dos Palmares, hoje estado de Alagoas, nasceu, viveu e lutou o maior herói negro da história do Brasil. Do samba de roda e da capoeira das populações quilombolas, dos dobrados e polcas das bandas de música dos europeus do norte, misturado às tintas do sangue de um povo ingovernável e miscigenado, iria surgir, ali na região, um dos mais fogosos ritmos e dança que se tem notícia: o frevo. A onda humana que se desloca O frevo é uma música genuinamente pernambucana, do final do século XIX, quando surgiram as primeiras bandas de música marcial, que executavam dobrados, marchas e polcas. Esses agrupamentos militares eram acompanhados por grupos de capoeiristas, que iam à frente dos desfiles para defender os músicos da multidão. Os capoeiristas precisavam de um disfarce para acompanhar as bandas, já que eram perseguidos pela polícia. Trocaram suas antigas armas por pedaços de madeira com enfeites dos clubes e pelo emblemático guarda-chuva. “Com o tempo, as pessoas começaram a imitar os passos dos capoeiristas e usavam as sombrinhas para completar a alegoria”, conta o prefeito de Recife, João Paulo, habitual participante do carnaval de rua da cidade. “Naquela época, os guarda-chuvas também poderiam servir como armas”, explica. A banda, composta por trabalhadores, seguia ladeira acima, ladeira abaixo. Os desfiles, no começo da república, misturavam todos os tipos de sangue fundidos nas ruas e becos de Recife. Segundo alguns estudiosos, o frevo é a única composição popular do mundo onde a música já nasce com a orquestração. Para o musicólogo Guerra Peixe, “o frevo é a mais importante expressão musical popular, por um simples fato: é a única música popular que não admite o compositor ‘de orelha’. Isto é, não basta saber bater numa caixa de fósforos ou solfejar para compor um frevo. Antes de mais nada, o compositor de frevo tem de ser músico”. Um século no próximo ano O primeiro registro do frevo apareceu cem anos atrás, na edição do Jornal Pequeno de 9 de fevereiro de 1907. Muita água rolou de lá para cá. Nos anos 1930, com a popularização do ritmo pelas gravações em disco e sua transmissão pelo rádio, convencionou-se dividir o frevo em frevo-de-rua, quando puramente instrumental, frevo-canção, quando há uma introdução orquestral e andamento melódico, e o frevo-de-bloco. Este último é executado por orquestra de madeiras e cordas (pau e cordas, como são conhecidas). Para Câmara Cascudo, historiador potiguar dedicado ao folclore e às manifestações populares brasileiras, “o carnaval dos grupos e dos ranchos, das escolas de samba do Rio de Janeiro, não é o carnaval do Recife, o carnaval da participação coletiva na onda humana que se desloca, contorce e vibra na coreografia, a um tempo pessoal e geral do frevo, com a sugestão irresistível de suas marchas-frevo pernambucanas, insubstituíveis e únicas”. Hoje em dia, graças a uma porção de incentivos e políticas culturais, não só Recife tem o prestígio de ouvir e dançar o frevo. A edição de 2007 do Carnaval Multicultural de Recife teve lançamento em São Paulo e Rio de Janeiro em novembro deste ano. É um forte sinal de que os “Vassourinhas” estão no Brasil inteiro, varrendo cidades e sotaques diferentes. Mestre Spok, diretor musical da SpokFrevo Orquestra, um dos grupos mais respeitados de Pernambuco, confirma essa expansão e sentencia vida longa para o ritmo: “Me deixa muito feliz ver o povo de Pernambuco e do Brasil curtindo cada vez mais o frevo. Eu alcancei uma época em que só tocava frevo no carnaval. Mais maravilhoso é tocar o ano inteiro, todos os dias, como eu faço agora. E o interesse só tem crescido”. Spok elogia a atuação das prefeituras de Recife e Olinda no papel de perpetuar o frevo: “Estão trabalhando muito seriamente neste carnaval, que marcará as comemorações do centenário”. A programação deste carnaval ainda não está fechada, mas, a julgar pelos preparativos que se anunciam há mais de dois anos, se morderá de arrependimento quem perder a grande folia pernambucana. O passódromo, onde desfilam as principais agremiações do carnaval, terá um destaque especial, e todos estarão com os pulmões plenos para gritar bem alto que “a injustiça dói, nós somos madeira de lei que cupim não rói”. F