Biblioteca Latino-Americana - Sete ensaios de interpretação da realidade peruana (1928), de José Carlos Mariátegui

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Sete ensaios de interpretação da realidade peruana (1928), de José Carlos Mariátegui (1894-1930), é o livro peruano mais traduzido e reeditado de todos os tempos e a primeira grande obra do marxismo latino-americano. No contexto das primeiras décadas do século XX, quando chegavam as ideias marxistas com os imigrantes operários europeus e se fundavam os primeiros partidos comunistas no continente, vários intelectuais, como Aníbal Ponce, na Argentina, e Astrojildo Pereyra, no Brasil, davam as primeiras pinceladas no que seria o marxismo latino-americano. Mas foi no Peru, com José Carlos Mariátegui, que se produziu a primeira obra de interpretação original da realidade do continente a partir de um arcabouço marxista. O país em que surgia a figura de Mariátegui estava ainda marcado pela humilhante derrota na Guerra do Pacífico (1879-1883), depois da qual o Peru cedeu ao Chile uma parte considerável de seu território e a Bolívia perdeu sua saída para o mar. O desafio para o pensamento marxista no Peru era compreender uma sociedade multi-étnica, na qual a classe operária ainda era uma pequena minoria. Natural de Moquegua, não muito longe do território perdido na Guerra do Pacífico, Mariátegui jamais conheceu o pai. Ainda garoto, começou a trabalhar no La Prensa, onde realizou tarefas várias até ascender à redação. Publicou poemas e peças de teatro que hoje são consideradas parte menor de sua obra. Como castigo por sua militância política, foi desterrado à Europa em 1919 e lá permaneceu durante quatro anos, na viagem que mudaria sua vida. Na Itália, entrou em contato com a resistência antifascista e, na Alemanha, entrevistou-se com Máximo Gorki. Quando regressou ao Peru, em março de 1923, já era um intelectual socialista maduro e um conhecedor das vanguardas artísticas europeias. Os sete anos seguintes seriam de intensa produção, marcados por sua liderança na efêmera mas influente revista Amauta—o principal veículo da vanguarda literária e plástica peruana—, a publicação dos Sete Ensaios e as fundações do Partido Socialista do Peru (1928), do qual Mariátegui foi nomeado Secretário-Geral, e da Confederação Geral dos Trabalhadores do Peru (1929). Sete ensaios de interpretação da realidade peruana abre polêmicas em várias frentes. Contra a corrente nacionalista democrática que daria origem ao APRA, fundado por Haya de la Torre--que defendia a primazia das classes médias na liderança das revoluções em países ainda não industrializados--, Mariátegui opôs o exemplo mexicano para argumentar que, sob a liderança da pequena burguesia, depois de uma “temporária embriaguez nacionalista”, prosperariam as tendências mais reacionárias. Aos marxistas que viam com desconfiança a arte de vanguarda e privilegiavam a estética do realismo tradicional, Mariátegui ofereceu vigorosas defesas de James Joyce, do surrealismo, e de poetas como César Vallejo, que trouxeram ao espanhol latino-americano o experimentalismo que então florescia na Europa, sem deixarem de estar, por isso, profundamente arraigados na realidade local. Aos que denunciavam a literatura indigenista como inautêntica, Mariátegui contrapôs a tese de que o fato de ser uma literatura sobre o índio escrita por mestiços não lhe tirava a importância histórica. Disse ele: “a literatura indígena, se deve vir, virá a seu tempo. Quando os próprios indígenas estiverem em condições de produzi-la”. Sem dúvida, é no terreno político-econômico que fica clara a originalidade dos Sete Ensaios. Mariátegui vê a tragédia do Peru como consequência de um modelo de colonização de rapinha, em que uma economia socialista (a do Império Inca) é destruída para a construção de uma economia feudal, na qual se misturaram, a partir do tráfico negreiro, elementos de uma estrutura escravista. A essa economia faltava, segundo Mariátegui, o “cimento demográfico”, já que os espanhóis e mestiços eram poucos para explorar todas as riquezas naturais do país. A interpretação de Mariátegui do “problema do índio”, tema do segundo ensaio do livro, representou uma revolução no pensamento peruano. Mariátegui partiu de uma premissa simples, mas de consequências radicais: a questão indígena não pode ser colocada como problema cultural ou moral. Não há soluções pedagógicas, humanitárias ou eclesiásticas para “o problema indígena”. Na verdade, que não há “problema do índio” que não seja o problema da posse da terra. Só haverá solução social para o drama dos milhões de índios saqueados de suas terras e lançados à servidão. Todo o demais — alcoolismo, ignorância, analfabetismo — deve ser visto à luz da questão da propriedade agrária. Para Mariátegui, o “comunismo agrário” do antigo Império Inca, mesmo que desenvolvido num sistema autocrático, teria que ser a base para a revolução no Peru. Seria a partir da própria experiência dos povos andinos que emergeria o socialismo indo-americano, não como uma volta ao regime Inca, mas como reinvenção e transformação de seu legado. A tese é polêmica e rendeu muita discussão ao longo do século XX. Mas nenhum de seus participantes jamais negou a Mariátegui a condição de gigante do pensamento de esquerda latino-americano. Ainda não há melhor introdução à colonização espanhola no Peru, ao processo elitista e incompleto de independência nacional e ao drama das massas indígenas subjugadas nos Andes. Para ler Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, no original espanhol, em excelente edição da Biblioteca Ayacucho, clique aqui. Para ler um bom ensaio sobre Mariátegui, escrito pelo peruano Eduardo Cáceres Valdivia e publicado na revista Teoria e Debate, clique aqui.
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A Biblioteca Latino-Americana da revista Fórum é uma coleção de introduções às principais obras do pensamento de nossos vizinhos, um acervo de referência sobre os grandes clássicos latino-americanos. A cargo de Idelber Avelar, a Biblioteca incluirá breves resenhas, compreensíveis para o leitor não-especializado, de textos clássicos de historiografia, teoria política, literatura e outras áreas. Quando possível, ofereceremos também o link à própria obra e a outros estudos disponíveis sobre ela.