Sobre a lei de anistia e a desmemória brasileira

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Não me restam dúvidas, e não as têm tampouco outros mais equipados que eu para tratar do tema, que a pérfida naturalidade com que se aceita, no Brasil, a violência cotidiana dos aparatos policiais do Estado contra os mais pobres e discriminados está relacionada à ausência de um trabalho de memória e de responsabilização dos torturadores e assassinos da ditadura militar. O tema voltará à pauta nesta quinta-feira, quando o Supremo Tribunal Federal julga os embargos de declaração interpostos pelo Conselho Federal da OAB na ADPF 153.

É importante entender que a ADPF 153 não propunha uma “revisão” nem muito menos uma “revogação” da chamada lei de anistia. O que se solicitava era simplesmente uma interpretação da lei conforme à Constituição Federal de 1988, de tal forma que não se entendessem como anistiados os crimes comuns praticados pelos agentes da repressão. Em abril de 2010, o STF indeferiu a Arguição, por 7 votos a 2 (derrotados os Ministros Lewandowski e Ayres Britto), decisão que é mais um capítulo da desconsideração do STF pelo Direito Internacional e pelo Sistema de Direitos Humanos.

Reúno aqui alguns materiais que podem ser úteis na compreensão do que está em jogo nesta pauta de quinta-feira do Supremo.

Série “Desarquivando o Brasil”, no blog de Pádua Fernandes (Compilação 1 e Compilação 2): trata-se de um dos maiores arquivos de reflexão sobre a memória da ditadura na internet brasileira. Destaco o post sobre Márcio José de Moraes, o juiz do caso Herzog, que nos brindou uma incomum responsabilização do Estado por um de seus crimes, o texto sobre as relações entre Belo Monte e a ditadura militar e um post recente sobre um entre muitos exemplos de negacionismo que encontramos no meio judiciário.

Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 153, assinada por Fábio Konder Comparato. Nela se encontra a fundamentação do argumento de que crimes contra a humanidade, como a tortura, não admitem nem a anistia nem a prescrição. Demonstra-se a contradição entre a interpretação da lei da anistia que contempla crimes como a tortura, o estupro e o desaparecimento forçado e vários preceitos fundamentais da Constituição de 1988. Mostra-se como o Artigo 1º da lei da anistia (é concedida anistia a todos quantos, no período compreendido entre 02 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes), em seu § 1º (consideram-se conexos, para efeitos deste artigo, os crimes de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política), redigido de forma deliberadamente vaga para anistiar torturadores, não estabelece, na verdade, a relação que pretende estabelecer, posto que está óbvio que não havia conexão entre os crimes políticos cometidos pelos opositores da ditadura militar e os crimes comuns contra eles praticados – prova-o cabalmente a imensa maioria dos torturados do regime, que não havia cometido crime de qualquer natureza. A íntegra do texto da Arguição tem 29 páginas e é leitura recomendada.

Nem justiça nem transição: a lei brasileira de Anistia e o Supremo Tribunal Federal. Aqui Pádua Fernandes analisa a decisão de abril de 2010, em que o STF indeferiu a ADPF 153, mostrando o disparate de se julgar uma emenda a uma Constituição revogada como superior à Constituição vigente, e desmontando também o fictício caráter reconciliatório, supostamente fruto de “debate nacional”, da lei da Anistia tal como imposta pelos militares e pelo partido oficialista (a ARENA) a um Congresso já recheado de senadores biônicos.

O regime do medo continua, entrevista de Deisy Ventura à Revista do Instituto Humanitas Unisinos: Uma entrevista fundamental da nossa maior internacionalista. Deve ser lida na íntegra, mas destaco aqui dois trechos. O primeiro: Do ponto de vista jurídico, toda e qualquer lei pode ser modificada pelo Congresso Nacional, total ou parcialmente, exceto as chamadas “cláusulas pétreas” da Constituição Federal. No entanto, o julgamento dos torturadores e assassinos não requer a revisão da Lei de Anistia, que concerne os crimes políticos praticados durante o regime militar. Um crime político é aquele que visa a subverter uma ordem instituída. Na década de 60, um grupo de militares promoveu um golpe de Estado, obviamente ilegal e antijurídico, autodenominado revolução. Este golpe de Estado é um crime político. Entretanto, a tortura, o estupro, o desaparecimento forçado e a execução sumária, praticados por alguns agentes do Estado partidários da ruptura da ordem democrática, não o são. O segundo: A tortura jamais poderá ser considerada um crime político. Não existe e jamais existiu ordenamento jurídico que a corrobore ou anistie. Caracteriza crime contra a humanidade, entre outros, a perseguição sistemática de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de sexo. Mireille Delmas-Marty  ensina a especificidade dos crimes contra a humanidade: o ser humano vê-se reduzido à condição de elemento de um grupo e rejeitado como tal, sendo destituído, a um só tempo, de sua singularidade e de seu estatuto no seio da humanidade. A relevância deste assunto deve-se a muitas razões, sobretudo a de que é preciso informar a população sobre a gravidade e a ilicitude destas práticas, para evitar que elas se repitam e possibilitar a reparação dos seus danos.

Uma caixa de ressonância de eventos no plano global: imperdível conversa entre Pádua Fernandes e Deisy Ventura. Observe-se a argumentação de Deisy sobre a condenação clara, no Direito Internacional, às chamadas leis de autoanistia, posto que, evidentemente, o “direito” dos golpistas não é direito, mas mera norma. Deisy também articula a relação entre a impunidade dos torturadores e o fato de que “os jovens favelados hoje já nasçam suspeitos, esgueirando-se nas ruas diante dos temidos agentes do Estado”. Destaco ainda uma frase fulminante da autora: Embora orgulhoso de sua retumbante inserção comercial internacional, o Brasil está cada vez mais isolado do mundo no se que refere à memória e à justiça.

A interpretação judicial da lei de anistia brasileira e o direito internacional, palestra proferida por Deisy Ventura em Oxford, é uma brilhante análise de como o Supremo Tribunal Federal tem aplicado pouco e mal o direito internacional. Deisy propõe que o indeferimento da ADPF 153 seria a continuação de um “provincianismo jurídico”, mostrando que o direito internacional – e todo o ordenamento jurídico do qual o Brasil já faz parte há tempos e que inclui as Convenções de Genebra, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, entre outras, foram solenemente ignoradas quando o Pleno do STF autorizou a interpretação da lei da anistia que caracterizava como “políticos” crimes como a tortura, o estupro e o desaparecimento forçado.

Não há, portanto, grandes motivos para estarmos otimistas nesta quinta-feira. Mas não está dada a possibilidade de não lutar