Solução para transporte exige responsabilização estatal e filosofia da mobilidade

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Apesar do atraso da atividade, a palestante Marly Silva esperou até que se conseguisse uma sala vaga para colocar em pauta os problemas de mobilidade - ou de imobilidade - que já atingem o homem em todos os cantos do mundo e não mais apenas nos grandes centros urbanos.

Após uma exposição de um ensaio fotográfico com imagens de ônibus lotados, falta de segurança e situações de descaso com idosos e deficientes, cenas que qualquer usuário já presenciou dentro de um veículo de transporte coletivo, a péssima qualidade do transporte coletivo foi colocada no topo da lista de reclamações por unanimidade entre os participantes. Mal projetados, sem espaço de inclusão, lotados, poucos - os sintomas da doença que atinge a qualidade do transporte coletivo formaram uma lista vasta. E o pior: pago. O diagnóstico? Marly vai ao ponto: “não interessa ao capital, às empresas, um transporte de qualidade, elas querem ter o retorno”, diagnostica. O remédio? “Temos que pensar em um modelo público de gestão do transporte, com participação popular”, defende. Mas acrescenta que esse controle deve sair da linha da democracia representativa para se aproximar da participativa, para evitar o predomínio dos interesses das empresas e dos cartéis que, como lembra a socióloga, dominam a atividade de gestão do transporte público e pressionam o governo principalmente em épocas eleitorais e manter sua hegemonia. Nesse sentido, Marly culpa o governo pela omissão em deixar a administração de uma atividade pública nas mãos da iniciativa privada e também por não fiscalizar a atividade dessa empresas. “Dede que eu me conheço por gente eu ando de ônibus e nunca vi um fiscal dentro de um automóvel verificando se a janela está abrindo, se tem espaço suficiente para as pessoas na frente”, declara a palestrante.

Privatização e exclusão

Na primeira rodada de discussões aberta ao público, uma senhora vestida com uma camiseta vermelha com o rosto do Che Guevara, Dona Terezinha, levantou-se e lembrou a situação excludente dos idosos e portadores e de necessidades especiais dentro dos transportes coletivos. “A idéia de se mudar as catracas para a parte da frente do ônibus foi justificada pela redução dos assaltos que ocorreriam com a medida”, lembra. “Mas, acabou prejudicando os idosos e portadores de deficiências”, e vai contra o direito de ir e vir garantido pela Constituição. Terezinha, que já faz parte do grupo da terceira idade, aponta para uma sistemática no mal-tratamento do idoso em nossa sociedade: “O idoso não tem lugar na sociedade do capital, porque a lógica é: se não produz mais, não serve”. A mesma lógica se aplica a qualquer grupo que não exerça uma atividade produtiva dentro do capitalismo, como os portadores de necessidades especiais ou desempregados, que não têm acesso ao transporte coletivo. E acrescenta: “Mas quando um mundo, que não este, for possível, teremos uma nova realidade”.

A condição do idoso acaba sendo uma evidência mais concreta desta concepção de transporte que não considera a importância da mobilidade na vida das pessoas. Para Marly, mover-se devia ser algo prazeroso, e não um fardo. E é assim considerado porque o transporte, como aponta, “é considerado pela lógica do capital como uma atividade-meio, e não atividade-fim, portanto não é um produto, não gera lucro”.

Nova filosofia

Nesse novo mundo em discussão, a questão do transporte (hoje) alternativo se torna salutar para que a mobilidade humana opere segundo uma nova filosofia, e não somente como alternativas individuais. Já hoje existem muitas pessoas que encontraram saida para o desemprego adotando o transporte alternativo como fonte de renda - como o aluguel de bicicletas, o moto táxi, e os micro ônibus.

Marly defende que a solução para a real mobilidade está na transformação cultural, no fim da cultura - ou cultivação - do carro e no entendimento de que a rua é um espaço de convívio coletivo, e lembra-se das cidades rurais em que pessoas e carros acabam transitando nas mesmas vias.

“O problema é que, aqui em Belém, existem muitas pessoas que vieram do interior e que estão acostumadas com essa cultura, e quando vêm para cá não são respeitadas pelos motoristas urbanos, que têm outra cultura”. Realmente, é muito mais comum ver transeuntes andando nas ruas do que nas calçadas, o que causa muitos acidentes, segundo informa a professora. Por isso, ela defende que todos devam adotar uma nova filosofia. “Mas essa é uma mudança difícil, demorada”, diz.

Também surgiu da platéia a consideração de que a mobilidade humana hoje só está tão em voga porque há uma necessidade grande de se locomover, uma vez que as atividades estão mais centralizadas, mesmo em cidades de porte médio. Em Belém, a maior parte dos órgãos públicos localiza-se no centro, e grande parte da população, que mora na periferia, precisa pegar uma condução. “O congestionamento sempre vai existir se não se descentralizar as atividades”, colocou-se.

Imobilidade global

Como bem lembrou a própria Marly, belenense e testemunha do descaso do poder público com o transporte - que na cidade é administrada pelo poder público, mas é de baixa qualidade -, o transporte por vias fluviais também apresenta grandes entraves de inclusão e de segurança. Na região Amazônica, principalmente, onde os caminhos fluviais são vários, a mobilidade é dificultada pela grande lotação das embarcações, que causam frequentes acidentes, geralmente graves.

“Mesmo no transporte fluvial é preciso ser considerado o controle público, porque os interesses do capital não vão colocar segurança em primeiro lugar”, declara a professora.

O que fazer?

Embora com um público tímido e pouco numeroso, Marly não se intimidou ao provocar os participantes e colocar em pauta: “Eu queria saber o que podemos fazer para que a discussão não ficasse só aqui. Já se provou que o transporte é um problema global, e todos sofrem com isso”, jogou a professora para seu público. Marly propõe a criação de um Fórum permanente de transporte público que dialogue com movimentos sociais e associações de bairro para estarem mais em contato com as alternativas propostas e as necessidades de cada comunidade, numa proposta de ação mais direta para a solução e para a viabilização da mobilidade humana. Mas ela não desconsidera uma postura mais institucional na possibilidade de articulação com o poder público. Inclusive ela sugeriu a criação de comitês compostos da forma mais aberta possível à sociedade, e não segundo a democracia participativa que, segundo ela coloca, apresenta muitas falhas.

Tornou-se consenso que a pauta da mobilidade deve ser colocada não somente em debates pontuais, mas que deve ser abordada dentro dos sindicatos dos trabalhadores de transportes, no movimento estudantil e associações de bairro.

A professora elaborará um documento com as discussões e soluções apresentadas na mesa de debates e pretende colcoar em pauta na assembléia final do Fórum Social Mundial para que se saia de Belém com diretrizes para a continuação dos debates e, principalmente, para a adoção de posturas e ações para uma nova filosofia de mobilidade humana seja possível.