Sombrero na mão

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Tortillas de milho fazem parte da dieta do mexicano que, em média, come 10 delas por dia. Todo esse apetite sempre garantiu mercado para pequenos produtores e indígenas. Em 2001, os agricultores mexicanos produziram 18 milhões de toneladas de milho, mas 3 milhões simplesmente não foram aproveitadas. Acontece que outras 6 milhões de toneladas do grão chegaram dos EUA com preços até 40% inferiores. A causa, segundo a Organization for Economic Cooperation and Development (OECD), é que, para cada hectare de terra cultivada, os EUA gastam US$ 122 em subsídios, contra US$ 53 do governo mexicano.

A crise enfrentada pelos produtores de milho tem sérias implicações para a população indígena e agrícola, gerando fome e perda da terra para 6 milhões de pessoas. Para piorar, o trauma não fica restrito ao cereal. Se antes do acordo, em alimentos, o país importava US$ 790 milhões, esse número subiu para 8,9 bilhões em 2000, representando 50% de todo alimento consumido no país.

O México sofreu transformações radicais desde 1994, quando o North American Free Trade Agreement (Nafta), a área de livre comércio da América do Norte começou a vigorar. Investimentos estrangeiros e exportações triplicaram, impulsionando a economia à posição de décima potência mundial e gerando 6,2 milhões de empregos, só com a instalação de novas empresas. Milagre que só o modelo neoliberal pode operar, alardeavam polianas de plantão.

Tais dados, porém, escondem o real. “O Nafta foi interessante apenas para as grandes corporações americanas”, denuncia Altamiro Borges, editor da revista Debate Sindical e organizador do livro Para entender e combater a Alca.

Um exemplo desse favorecimento é o capítulo 11 do acordo, que as coloca com o mesmo estatuto legal dos Estados membros. Isso quer dizer que, alegando prejuízos, podem questionar em tribunais especiais novas leis aprovadas pelos governos que as desfavoreçam perante as companhias do país, exigindo compensações ou até a revogação. “Algumas universidades mexicanas estatais foram questionadas por faculdades privadas do Texas que queriam receber os mesmos subsídios para funcionar”, destaca Borges.

Já os efeitos negativos atingiram até os trabalhadores norte-americanos. Para se ter uma idéia, nos quatro primeiros anos do Nafta os EUA perderam 700 mil empregos. “Isso por conta das empresas que migraram em busca de mão de obra mais barata e isenção fiscal”, afirma Borges. Ele ainda aponta que hoje metade da força de trabalho do país atua no mercado informal. Em relação aos salários, tiveram aumento médio de 135%. Acontece que a inflação foi de 560% no mesmo período. A pobreza aumentou, saltando de 16% da população (11 milhões de pessoas) em 1994, para 58% (51 milhões) em 2001. Os indigentes, aqueles que ganham menos de 1 dólar por dia, representam hoje 20% da sociedade.

Sem falar do aumento da dependência em relação aos EUA. “A condição do México se assemelha ao estatuto de Estado livre de Porto Rico”, aponta Nildo Ouriques, professor de economia da Universidade Federal de Santa Catarina. Das importações, 74% vêm dos EUA e 89% das exportações vão para lá. Vale notar que o aumento desses valores pós-Nafta não foi tão grande, já que a relação comercial com os EUA beirava os 80%. Ocorre que a desnacionalização é latente em quase todos os setores. As instituições financeiras estrangeiras (principalmente dos EUA) detêm hoje 83% do mercado mexicano.

“A elite sabia que essa dependência cresceria com o Nafta, mas apostava que poderia negociá-la melhor com o acordo”, garante Ouriques. “Isso porque os EUA usam todo os seus recursos militares e políticos para impor seus interesses e não há nenhuma forma de evitar isso. Mesmo que se obtenha alguma vantagem, ela é passageira, sendo retirada na primeira das atualizações do tratado”, completa.

Tullo Vigevani, professor de ciências políticas da Unesp, concorda que a situação chegou a esse ponto por decisão das elites. “Eles acreditavam que uma ampla abertura seria o único caminho para a modernização do México, que o motor da economia seria o comércio internacional”, aponta.

Segundo Vigevani, isso promoveu mudanças em pontos clássicos da política do país. Até o final da década de 80, o México era a única nação da América Latina que votava por Cuba nos fóruns continentais e mantinha relações com os países comunistas.

Pura maquiagem “A gente tem de lembrar sempre que comércio exterior não é padrão para medir grandeza de um país; os EUA, por exemplo, exportam apenas 15% do que produzem”, lembra Ouriques. No caso do México, elas estão restritas principalmente a dois setores, a indústria petrolífera e as maquiladoras.

A Pemex – estatal de extração de petróleo – mantém 9,6% do total de exportações do país, mas com uma alteração essencial em relação ao patamar anterior ao acordo. O México (dono da 10ª maior reserva do mineral do mundo) vendia derivados, o que não ocorre mais. Como petróleo é questão de segurança nacional nos EUA, eles se reservam o direito de comprá-lo bruto dos mexicanos. Detalhe: depois revendem a gasolina para eles.

Quanto às maquiladoras, em geral transnacionais que a partir de peças importadas montam produtos usando e abusando da mão-de-obra barata, aumentaram muito depois da entrada em vigor do Nafta, chegando atualmente a cerca de 4 mil. Elas funcionam em zonas francas – isentas de impostos – e se concentram em regiões fronteiriças.

Num primeiro momento, a justificativa para criá-las era a de que conteriam o fluxo migratório de mexicanos para os EUA. Mas atualmente passaram a se instalar também em grandes cidades, como Guadalarrara e Cidade do México. Afinal, proporcionam enormes lucros para o chamado mercado. “Os gastos das empresas são exclusivamente em óleo, papel e mão-de-obra”, aponta Ouriques. As condições dos trabalhadores são as piores possíveis. Sem direito a férias, aposentadoria, hora-extra ou associação sindical e com salários entre 8 e 10 vezes menores do que o de um norte-americano na mesma função.

Na região da fronteira, o salário não passa de US$ 0,40 por hora. Cerca de 70% são mulheres entre 16 e 24 anos que, em muitas fábricas, são obrigadas a comprovar periodicamente que não estão grávidas – por meio de exames ou até mostrando o absorvente usado – segundo denúncias de ONGs da região.

Mas nem com toda essa situação precária, as maquiladoras estão firmando-se no México. Algumas – responsáveis por mais de 85% das exportações do país – vêm se retirando nos últimos anos. De dezembro de 2000 a novembro de 2002, 16% dos trabalhadores das maquiladoras foram para a rua. Os motivos são a estagnação da economia norte-americana e a saída das empresas do país. “Tendo em vista a política dos EUA de firmar áreas de livre comércio e patrocinar a entrada de mais países na OMC – incluindo a China – a situação pode se agravar mais”, alerta Tullo Vigevani. A proximidade pode deixar de compensar devido aos salários ainda mais baixos pagos em outras regiões do mundo, especialmente na Ásia.

Rotas de fuga Sair da situação de extrema dependência parece bastante improvável. “O México precisaria tomar medidas de defesa de sua soberania, estabelecer políticas de diversificação nas relações exteriores”, sugere Altamiro Borges. Buscando outros mercados, o país poderia se livrar da vinculação total.

Esse tipo de visão vem sendo, ainda que timidamente, buscada pelo governo. Tanto assim que firmou em 2000 um acordo de livre comércio com os países da União Européia e outro semelhante com os vizinhos da América Central.

No entanto, é difícil imaginar uma mudança tão simples. “Hoje, o México não dá nem um passo sem estar amarrado ao Nafta”, adverte Nildo Ouriques. “Tanto os acordos bilaterais como outras áreas de livre comércio não vão garantir a diversificação de que o país precisa”, lamenta. Para ele, a única saída seria a retomada do protagonismo. “Que se perdeu quando a revolução se institucionalizou (em 1945) e mais ainda nos últimos 20 anos. Hoje os partidos de esquerda de lá não representam nada”, aponta.
Tullo Vigevani lembra ainda que há um outro entrave: os imigrantes (em grande parte ilegais) presentes nos EUA. As remessas de dólares deless equivalem a US$ 11 bilhões, superando até os investimentos diretos de empresas norte-americanas (equivalentes a 10 bi). É uma questão não resolvida, motivo de tensão nas relações entre os países, especialmente depois do 11 de setembro, quando virou tabu definitivamente.

Assim, qualquer ação mexicana que desagrade aos interesses americanos pode ser retaliada com medidas contra essa população de imigrantes. “Qualquer partido que esteja no governo, até o PRV – que é o mais à esquerda entre os grandes – precisaria manter uma política de boa vizinhança com os EUA, evitando o enfrentamento direto”, sustenta Vigevani.

As tais maquiladoras Das 4 mil maquiladoras que funcionam no México gerando 1,28 milhões de empregos, muitas são acusadas de desmatamento de reservas florestais e de despejar poluentes no ar sem controle algum, sem contar o fato de não respeitarem acordos trabalhistas. Separando as 100 empresas que mais empregavam em 2002, tem-se uma boa amostra das áreas de atuação delas. De origem americana são 80 sendo que as demais estão dividas entre o Japão, México, Alemanha, Coréia do Sul, China, Canadá e Holanda. A indústria de eletro-eletrônicos fica com 40, a automobilística com 20 e a têxtil domina 8. Segue abaixo uma descrição da região da fronteira – onde se encontra o maior número de empresas desse tipo – com algumas características de cada parte.

Baja Califórnia: São 1290 empresas com cerca de 278 mil trabalhadores nas maquiladoras. É onde está instalado o Cartel de Tijuana, que leva o nome da principal cidade da região, a quarta maior do México, com mais de um milhão de habitantes. Companhias na região: Goldstar, Sony, JVC, Mitsubishi, Samsung, Sanyo, Hitachi, Panasonic, Pioneer, Acer, Canon.

Sonora: 108 mil pessoas trabalham em 290 maquiladoras. Da mão de obra delas, apenas 23,11% atuavam em 13 companhias que não eram dos EUA. A região de Nogales é a maior porta de entrada de produtos estrangeiros do México, computando 2/3 de todo o tráfego comercial do Arizona. As companhias de atuação em Sonora são a Bose, Ford, Daewoo, Acosa, American Safety Razor, Sara Lee, Midcom.

Chihuahua: Aproximadamente 452 maquiladoras com 303,7 mil trabalhadores. Passam pela região, um quarto de todo o comércio entre o México e os EUA. É a região de Ciudad Juarez, onde está instalado outro importante cartel de tráfico de drogas. As companhias que atuam em Chihuahua: Acer, Toshiba, Zenith.

Coahuila: 286 empresas empregam 110,6 mil mexicanos. A mineração é uma das atividades mais importantes deste estado e de maior extração em nível nacional, incluindo ferro, titânio, ouro, prata, zinco etc. Coahuila contabiliza 36% da produção mexicana de aço e isso estimulou o estabelecimento de novas plantas automobilísticas. As companhias de atuação na região: General Motors e Chrysler.

Nuevo Leon: 62,1 mil trabalhadores em 162 maquiladoras. As empresas de atuação em Nuevo Leon: CYDSA, Visa, Pioneer, Nippon Denso, Vitromatic.

Tamaulipas: Cerca de 397 indústrias com 178,3 mil trabalhadores. A principal linha de trem que sai do México e vai para os EUA passa por essa fronteira. As companhias de atuação em Tamaulipas: Matsushita, Deltronics, Zenith.

Chile, o mais liberalizante Em 13 de janeiro deste ano, o Chile anunciou um acordo bilateral com os EUA. As negociações foram iniciadas logo após a entrada em vigor do Nafta, em 1995. As negociações do governo chileno com os EUA não são uma medida isolada, já que o país vem se concentrando em estabelecer acordos desse tipo. O México e o Canadá foram os primeiros a fechar pactos de livre comércio. Coréia do Sul e União Européia vieram depois. O acordo com os EUA chamou mais atenção porque, de certa forma, se antecipa às negociações da Alca, a Área de Livre Comércio das Américas.

“O Chile preferiu antecipar, acreditando que poderia obter privilégios em curto prazo do ponto de vista econômico e externo”, aponta Tullo Vigevani. “Não abriu totalmente os mercados, mas fez acordos de transição que prevêm isso em 15 anos. De qualquer forma, o Chile conseguiu abrir o mercado americano”, completa.

De imediato, serão isentos de tarifas mais de 85 % do comércio bilateral de produtos industriais. Os demais serão liberalizados em quatro anos. Para produtos agrícolas, o Chile vai eliminar gradativamente, durante quatro anos, 75% das tarifas aplicadas às importações americanas. As taxas só serão eliminadas por completo neste setor em 12 anos.

O principal produto de exportação chileno é o cobre, mas não seus processados. Com o caminho aberto para a entrada de empresas norte-americanas, os chilenos temem que a possibilidade de desenvolver esse tipo de indústria fique muito reduzida.

O controle chileno de fluxo de capitais estrangeiros, apontado como exemplar por críticos da economia neoliberal para fugir dos capitais especulativos, poderá ser mantido por pelo menos um ano. Este é o prazo máximo para que os congressos dos dois países ratifiquem o acordo. Porém, é difícil que o país consiga manter esta ação, já que a pressão norte-americana será muito forte. Uma das principais causas do fracasso das negociações de um acordo semelhante com Cingapura foi a exigência do país asiático em manter seu sistema de controle de capitais.

Regina Vargo, vice-representante de Comércio dos EUA (USTR) para as Américas, ao anunciar os detalhes do acordo, classificou como “o mais liberalizante” que os Estados Unidos já negociaram com qualquer de seus parceiros comerciais.