“Tinha que fazer uma chacina por semana”?

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Não, as declarações dos representantes do mais alto escalão do Poder Executivo não foram somente afirmações infelizes. São um reflexo bem delineado da lógica que organiza o tratamento do Estado brasileiro ao seu povo, neste novo ciclo político. Por Débora Medeiros* (A palavra de ordem de um Estado incapaz) Saudações a quem tem coragem. Dois mil e dezessete chegou exigindo nervos de aço. Na nova temporada da luta política brasileira, não há lugar para meias palavras. Mediação e ponderação estão, igualmente, dispensadas. Eis a nova forma de atuação do Estado brasileiro: a brutalidade ostensiva e explicita contra o povo, tanto maior quanto mais vulnerável o estrato social em questão. Diante de rebeliões em presídios brasileiros que dizimaram uma centena de presos, impressionando pela crueldade dos métodos, a reação imediata do Estado, em especial do Governo Federal, é digna de análise. Numa tentativa de esquivar-se do ônus político do ocorrido, o Presidente da República (após dias de silêncio) preferiu tratá-lo como casualidade - “acidente pavoroso” -  e transferir a fatura da tragédia, dizendo que o presídio “era privatizado”. Mas o corolário da inadequação da reposta dos homens de Estado do Governo Federal aos acontecimentos ficou a cargo do então Secretário Nacional de Juventude. Ao dizer que “tinha que matar mais”, “fazer uma chacina por semana”, Bruno Júlio escancarou a lógica subjacente ao tratamento dado à situação. Não, as declarações dos representantes do mais alto escalão do Poder Executivo não foram somente afirmações infelizes. São um reflexo bem delineado da lógica que organiza o tratamento do Estado brasileiro ao seu povo, neste novo ciclo político. São, também, a expressão de uma mudança na correlação de forças na luta política brasileira, que a partir de 2013 passou a ter um ultraconservadorismo intolerante, que compartilha diversas características com o fascismo, como ator fundamental. Estamos diante de um Estado que acaba de renunciar completamente aos seus papéis de indutor do desenvolvimento e promotor de bem estar social. Um Estado econômico e social mínimo, cujos representantes no Executivo e no Legislativo defenderam publicamente a necessidade de lançar o povo brasileiro ao sacrifício, em meio a uma recessão econômica, com as medidas da PEC 55 e das reformas previdenciária e trabalhista. Estamos diante de um poder público que sabe que as condições de vida do povo no próximo período tornarão mais atraentes, para as massas pauperizadas, as atividades ilegais. E de um Estado que não se envergonha em dizer que, se um homemexerce uma atividade ilegal,ele pode (ou deve) ser morto. E mais. Estamos diante da quarta maior população carcerária do mundo, que segue em crescimento acelerado. Uma população carcerária composta majoritariamente por jovens negros, com grau de escolaridade extremamente baixo. Estamos falando de um sistema penitenciário onde um espaço concebido para custodiar dez pessoas é ocupado por dezesseis. E, de modo ainda mais impressionante, estamos diante de um sistema carcerário onde 41% dos presos não foram, sequer, condenados de fato pela justiça. Embora estes dados (de livre acesso e retirados do Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias – Infopen - de junho de 2014) falem muito por si, é preciso acrescentar-lhes análise política, desviando-nos da armadilha de dar soluções técnicas a questões que são sobredeterminadas pelas múltiplas variantes da luta política. O objeto de que aqui tratamos é um Estado débil em sentido político e econômico, e que, como resultante de uma correlação de forças que tende à afirmação da barbárie, não se envergonha em mostrar-se duplamente incapaz. O Estado brasileiro tem sido incapaz, em primeiro lugar, de reverter o saldo social de uma evolução histórica onde o desenvolvimento capitalista é permeado pelo racismo. Retomemos o dado: a população carcerária brasileira é composta, majoritariamente, por negros de baixa escolaridade, boa parte dos quais sem condenação real. Estamos falando de jovens que o Estado não foi capaz de educar e capacitar, para quem o custo da atividade criminal, dada a ausência de oportunidades na economia formal, torna-se baixo. E estamos falando de uma tendência que irá amplificar-se, dada a renúncia do Estado ao seu papel socialcom a PEC 55. Constatada a incompetência do Estado em atuar nas causas estruturais da criminalidade, restam-lhe os cuidados paliativos do Judiciário e do sistema carcerário. E é aí que o atual modus operandido Estado brasileiro, dirigido por um governo ilegítimo, mostra a face mais letal de sua incapacidade. Se 41% de uma população carcerária negra e pobre está presa sem condenação e o Estado afirma, diante de uma chacina, que tratou-se de um acidente, ou incita mais matanças, qual é quadro político maior, que se apresenta aos olhos de quem queira ver? Apertem os cintos. Estamos diante de um Estado que, após conduzir seu povo à barbárie pela precariedade de suas condições de vida, está disposto a condená-lo e executá-lo sem qualquer processo legal. Antes de, sequer, concluir se o dito “bandido” é, de fato, “bandido”, o Governo Federal justifica o seu assassinato. E não o faz sem motivos. Está, na realidade, jogando para a plateia. Se 57% da população brasileira (dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, 2016) acredita que “bandido bom é bandido morto”, definir se quem está preso é, de fato, condenado, torna-se uma questão menor. Da mesma forma, construir um discurso com menor carga de violência simbólica dirigida ao povo pobre, negro e encarcerado torna-se dispensável. O que explica estruturalmente as ocorrências dantescas da última semana é a política, e não a técnica. Esta é a chave de compreensão necessária. Armemo-nos, portanto, da política. E para a política. *Débora Medeiros é médica e coordenadora do projeto A São Paulo que Queremos