Transfobia no mercado de trabalho

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As dificuldades enfrentadas por Travestis, Transexuais e Transgêneros no dia a dia para vencer o preconceito velado em organizações Por Antonio Flávio  Pessoas trans estarem cada vez mais inseridas no nosso dia a dia. Elas estão nas redes sociais, nas faculdades e até mesmo na televisão, como a personagem Elis Miranda, interpretada pelo ator Silvero Pereira da novela A força do querer, da Rede Globo. Entretanto, nas empresas, a realidade é outra. Muitas corporações ainda negam, mas não possuem nenhum empregado LGBT assumido. Segundo a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), 90% das travestis e transexuais se prostituem no Brasil. O número é alarmante e revela o quanto é difícil uma pessoa trans arranjar um emprego formal, principalmente com carteira assinada. Já de acordo com a Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (RedeTrans), 82% das mulheres transexuais e travestis abandonam o Ensino Médio por causa da discriminação na escola e, em muitos casos, pela falta de apoio da família. “É muito difícil ver uma trans como vendedora, uma trans como caixa de mercado, como recepcionista de um consultório dentário. O preconceito existe sim, as pessoas fazem vista grossa, mas existe sim”, diz a cantora trans de funk carioca, Priscila Pepita, mais conhecida como “Mulher Pepita”. Transexuais, desde sua infância sofrem com atitudes preconceituosas. Principalmente na fase de descoberta, quando o apoio é fundamental, o bullying atrapalha o autoconhecimento. “Quando as pessoas começam a te cobrar, dói muito, porque, além de você se achar diferente, eles te lembram isso 24 horas por dia. Somos pessoas que ninguém fala, não temos voz”, denuncia Jogê Pinheiro, transgênero e universitária.  Jogê afirma sofrer preconceito não somente por ser trans, mas também por ser negra e nordestina. Sobre isso, ela relata: “Você não pode ser vesgo, ter um olho torto, ter orelha grande, você não pode ser gordo, você não pode falar grosso, você não pode falar fino. Que mundo é esse, onde o diferente não pode existir?”. Jogê conta que, quando chegou em São Paulo, com 17 anos, foi difícil encontrar um emprego. “Como eu não era trans, era ainda um ‘rapazinho’, eu consegui. Não foi o emprego que eu queria, foi em uma padaria. No começo, as pessoas estranham um pouco, mas aí elas têm a chance de ver quem você realmente é", completa. Após a mudança de gênero, sem intervenções cirúrgicas, Jogê não conseguiu emprego e diz que muitos não a veem nem como uma profissional. Hoje, ela trabalha com a área humorística, interpretando a personagem Barbara Ursulla Guimarães em shows. Como Barbara, Jogê realiza shows em eventos, festas e também, teatro. Seu show é intitulado Telegrama Animado. Mesmo quando pessoas trans conseguem emprego, o preconceito não acaba. São desrespeitadas diariamente em seu trabalho, não são tratadas pelo nome social, além dos patrões “esquecerem” e tratarem no pronome errado. É o caso de Val Paveloski, 47, atualmente cabeleireira e professora da rede pública estadual de São Paulo. Val aos seus 19 anos trabalhava como chefe na área de análise de contas de um convênio na capital paulista. Um dos representantes da empresa em outra região ao vir a São Paulo, unidade na qual Val trabalhava, informou a direção da empresa a impossibilidade de uma transexual ser funcionária daquela instituição. Sendo assim, Val logo foi demitida. “Não foi levado em conta eu ser uma ótima profissional. Nunca dei problemas para a empresa na questão da minha função dentro do trabalho”, relata. Centro de Cidadania LGBT Com a necessidade de “desenvolver ações de combate à homofobia e respeito à diversidade sexual” foram criados, em São Paulo, os Centros de Cidadania LGBT. Atualmente, a cidade de São Paulo possui quatro unidades destes centros. Joyce Felix, travesti, ativista e recepcionista do Centro referente a região Sul da capital paulista, acha que o pensamento das empresas com pessoas trans tem evoluído bastante. “Hoje eu tenho 43 anos. Quando eu tinha 20, sem chance travesti ou menino trans, menina trans trabalhar. Tinha que procurar outra alternativa. Vender bala na rua ou se prostituir, porque era um não bem claro. Hoje deu uma leve melhora, para aquelas pessoas determinadas. Quem encara e mostra a cara, quem não tem vergonha de pedir emprego”, informa Joyce. Nos Centros, há assistentes sociais, psicólogas e advogados para apoiar as visitantes. Além disso, todos possuem unidades móveis, que funcionam de quarta a domingo. As unidades móveis dos centros vão em regiões de grandes concentrações de LGBTs para divulgar o projeto, a fim de inseri-los no mercado profissional, realizar testes rápidos de HIV e orientações sobre o Programa Transcidadania. “Os centros de cidadania LGBT são essenciais para a vida de uma pessoa LGBT. Além desse atendimento social, jurídico e psicológico, extremamente importante, muitas pessoas já foram salvas, de perder a sua vida porque nós existimos. Não é algo de pouca importância, é um equipamento que muda vidas, transforma e salva pessoas”, relata a Assistente Social Giselle Cardoso, do Centro de Cidadania da região Sul. Giselle ainda faz uma grave denúncia, “Uma pessoa travesti, transexual se sofrer uma violência e for a delegacia, na maioria dos casos, ela não vai ser atendida. Nós, do Centro, acompanhamos até a delegacia para garantir que o boletim de ocorrência seja feito”, conclui. Transcidadania O projeto da Prefeitura de São Paulo, Transcidadania, tem a função de dar oportunidades profissionais e inserção social para travestis e transexuais em situações de vulnerabilidade social. Administrado pela Coordenadoria de Assuntos de Diversidade Sexual (CADS), o projeto oferece um auxílio mensal de R$ 983,55, a chance de concluir o Ensino Médio, além de apoio jurídico, psicológico, profissional e formação cidadã com duração de 2 anos. O programa possui uma carga horária diária de seis horas, sendo elas distribuídas em quatro para o ensino na modalidade EJA (Educação para Jovens e Adultos) e as outras duas para cursos profissionalizantes. “O projeto Transcidadania, da prefeitura, está sendo muito bom. Não só para mim, mas para muitas travestis. Porque têm muitas que moram na rua, em albergues”, afirma Gleicy Capobiano, participante do projeto. A principal crítica ao projeto é em relação ao pouco número de vagas. Em 2015, ano de estreia do projeto, foram 100 vagas. Já em 2016, o número dobrou. Chaiany Chinayder, ex-participante, adorou o projeto. “Eu gostei do projeto, foi muito bom para mim, porque pude concluir o ensino médio. Foi um divisor de águas na minha vida. Hoje tenho outra cabeça. Tinha psicólogos, explicavam decretos sobre a gente (trans), que nos protegem e eu nem conhecia”, disse. Chinayder já possuiu três empregos com carteira assinada e alega o preconceito das empresas com pessoas trans. “Até contratam mas põem no cargo mais escondido. Se for uma loja, vai colocar no estoque para ninguém ver que trabalha na loja”, denuncia. Para o assessor de comunicação da Coordenação de Políticas para LGBT, Ricardo Bezerra, o projeto Transcidadania “é muito importante para elevação escolar, no resgate da dignidade e cidadania das pessoas trans que historicamente tiveram seu acesso aos serviços públicos cerceados.  O Programa deve, além de promover a elevação escolar, também incluir essas pessoas no mercado de trabalho através de parcerias com empresas”, afirma. As parcerias com empresas, citadas por Ricardo, são realizadas através da própria Coordenadoria. “A questão da exclusão das pessoas trans no mercado de trabalho começa quando os direitos mais básicos foram negados, como por exemplo acesso a saúde, educação e na maioria dos casos a ausência de uma família que dê suporte para o desenvolvimento desta pessoa”, diz. Empreendedorismo Devido às dificuldades para encontrar empresas “Gay-Friendly”, termo usado para lugares, pessoas e empresas onde não há restrições em receber pessoas LGBTs, alguns abrem o próprio negócio. É o caso de Jesse Rother, 25. Com o apoio de seu pai e mais dois amigos trans, fundou o Inkat Tattoo, estúdio de tatuagem localizado na Vila Clementino. “Tenho vários amigos trans e eles estão desempregados. Não conseguem nem entrar em entrevistas, pelo problema do nome de registro com o nome social”, alega Jesse. Jesse, antes de criar o estúdio, chegou a trabalhar em uma empresa de fotografia. Entretanto, para conseguir o emprego, passava-se por cisgênero, ou seja, fingia ser do gênero ao qual foi designado em seu nascimento. “Isso me frustrava. Então eu decidi não trabalhar mais em empresas, não vou procurar emprego tradicional, onde não tem espaço para pessoas trans”, afirma. Psicologia Infelizmente, o travestismo e a transexualidade ainda são considerados distúrbios mentais e estão na lista de Classificação Internacional de Doenças, a CID-10. Entretanto, para a psicóloga organizacional Sirlene Ferreira, não existe nenhum estudo científico que comprove a não competência de uma pessoa de acordo com o gênero. “As competências não podem ser medidas pelo gênero”, afirma. Sirlene ainda completa, ponderando que travestis acabam no meio da prostituição por falta de oportunidade. “É lamentável um ser humano se sujeitar porque a própria sociedade o coloca nessa situação”, conclui Sirlene. Há um movimento globalizado pela retirada da transexualidade das doenças identificáveis como transtornos mentais, conhecido como “Pare a Patologização!”. Segundo o Psiquiatra e professor da Universidade Federal de Uberlândia Dr. Guilherme Gregório, “Mais de 100 organizações e quatro redes internacionais na África, Ásia, Europa, América do Norte e do Sul estão engajadas na campanha pela retirada da transexualidade do DSM (Associação de Psiquiatria Americana) e do CID. Entretanto, há outra ação questionando se a retirada da condição de transtorno dificultará o atendimento pelos planos de saúde, cirurgias específicas, terapias pelo SUS etc”. Em 2018 acontece a discussão da 11ª versão da Classificação Internacional de Doenças (CID-11). Transempregos O problema que travestis, transexuais e transgêneros enfrentam em arranjar trabalhos está caminhando, devagar, à uma solução. Um exemplo é a iniciativa de Márcia Rocha e dois amigos para a criação de um site voltado a vagas de empregos ao público trans: o transempregos. Desde 2014, o site obteve mais de 6.105 curtidas em sua página no Facebook e 430 currículos cadastrados em seu sistema. Apesar de avanços conquistados lentamente, como os Centros de Cidadania LGBT, o programa Transcidadania e o site Transempregos, ainda há um longo caminho para ser percorrido, onde as pessoas, independentemente de suas escolhas, tenham espaço na sociedade e no mercado de trabalho. Foto: Priscila Pepita/Reprodução e Jogê Pinheiro. Crédito: Antonio Flávio