Transtornos mentais atingem 68% das mulheres encarceradas no estado de São Paulo

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Maior vulnerabilidade social faz com que a possibilidade do agravamento da dependência de drogas aumente e contribua para a reincidência criminal Por Renata de Oliveira Entre banhos de sol esparsos e celas inadequadas, o sistema penitenciário brasileiro tem tido constantemente a sua capacidade de resolução dos problemas criminais questionada, e dados sobre a ocorrência de transtornos mentais nas penitenciárias de São Paulo colocam em cheque também a sua eficiência na recuperação dos detentos. Um estudo do Departamento de Psiquiatra da UNIFESP sobre o tema aponta que, no Brasil, a prevalência de transtornos mentais graves entre os encarcerados é de 5 a 10 vezes maior do que na população geral. Para as mulheres, os números são ainda mais preocupantes. Entre 617 entrevistadas, 68,9% das detentas já tiveram algum tipo de transtorno mental ao longo da vida. 38,4%, desenvolveram os distúrbios no período dos últimos 12 meses, enquanto para os homens o número é de 54% e 19%, respectivamente. A pesquisa, conduzida há dois anos por Maíra Mendes dos Santos, mestre em Psiquiatria e Psicologia Médica, com 1809 detentos (1192 homens e 617 mulheres), aponta que tímidas melhorias no sistema penitenciário, como a realização de atividades educacionais, que em 2010 atingia 8% e quatro anos depois representava 11% da população dos presídios, não acompanharam o ritmo do encarceramento. A superlotação, falta de higiene, pouca circulação de ar, o aumento no risco de doenças infecciosas e o uso de drogas dentro do sistema não impediram que o número de pessoas presas entre os anos de 2000 e 2014 passasse de 232 mil para mais de 607 mil detentos no país, representando um aumento de 119% na população carcerária. Os números se tornam mais preocupantes quando se observa o quadro do cárcere feminino, que teve um aumento de 567% no mesmo período, colocando o Brasil entre os cinco países com maior população prisional feminina do mundo, segundo dados divulgados pelo próprio Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias em junho do ano passado. Para José Rodrigues de Alvarenga Filho, especialista em Psicologia Jurídica pela UERJ, muitos dos traumas psicológicos seriam eliminados se as prisões não sofressem com tanta superlotação. “É um descaso do poder público e da sociedade. Para as pessoas os presos não são humanos”, comentou o psicólogo. “O seu extermínio não é percebido como crime ou fatalidade, porque ele não merece pena ou nova chance. É um sujeito que deve ser eliminado”, completou. A privação da liberdade pode ser considerada por si só um fator estressante, e as limitações estruturais das penitenciárias dificultam o tratamento de transtornos com a falta de avaliação adequada da situação médica do preso, o que faz com que muitos detentos cumpram sua pena em presídios comuns, prejudicando ainda mais sua reinserção na sociedade. Mais da metade das cadeias não tem módulo de saúde O distúrbio mais frequente apresentado em ambos os gêneros foi o relacionado ao transtorno fóbico-ansioso, no qual estão inclusos o pânico, a agorafobia e o transtorno de estresse pós-traumático, que afeta cerca de 40% das mulheres encarceradas e 26,4% dos homens. O segundo maior distúrbio encontrado entre os detentos é o considerado de natureza afetiva, como transtorno bipolar e depressão, apresentada por 36,5% das mulheres e 12,3% dos homens ao longo da vida. Em seu último levantamento geral em junho do ano passado, o DEPEN (Departamento Penitenciário Nacional) revela que 63% das unidades prisionais no país não possuem um módulo de saúde para o atendimento dos detentos, o que impossibilita o acesso a qualquer serviço de atenção básica no local. Dados também apontam que há apenas 187 médicos psiquiatras em todo o país responsáveis por cuidar da saúde mental dos presos, sendo que estados como Rio de Janeiro e Roraima não contam com qualquer profissional da área, enfermeiros ou dentistas. Os transtornos mentais ainda são um grande tabu. Além das poucas pesquisas sobre o assunto, são raros os detentos que espontaneamente relatam sofrer de algum tipo de distúrbio, seja pelo estigma associado a doença mental ou pelo medo de serem transferidos para hospitais de custódia. Estas pessoas também apresentam perfis mais vulneráveis dentro do sistema penitenciário por conta das alterações em seu estado mental, que os tornam mais propensos a comportamentos de risco, envolvimento em brigas, indisciplina, uso indevido de drogas e automutilação. As cadeias ainda apresentam aspectos singulares de crueldade para as mulheres, que dentro das penitenciárias apresentam cinco vezes mais chances de possuírem algum problema de saúde em comparação com a população feminina em geral. A presidente do ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania), Michael Mary Nolan, afirma que “o presídio não foi pensado para elas". Além de trazer consigo a questão de gênero, as mulheres se veem em meio a um sistema penal machista, que resulta em uma “tripla condenação”, na perda do emprego, casa e quando são mães, também na guarda dos filhos, que pode ser decidida pelo sistema judiciário. "Qualquer pessoa que passe pelo presídio volta para a sociedade mais fragilizada. A finalidade da prisão é destruir a segurança de que ela é alguém importante”, comentou Michael. O sistema não recupera, adoece O álcool e as drogas também figuram nas estatísticas como um outro fator comum, atingindo 40,8% das mulheres até o momento da prisão, enquanto os homens aparecem com 45%, porcentagem que sobe para 89,9% se levado em consideração os presos em detenção temporária. É possível também notar uma diferença na maneira como os entorpecentes são utilizados por cada um. Enquanto para elas, os ilícitos são uma forma de automedicação para bloquear sentimentos e lembranças traumáticas, para a maior parte dos homens as substancias são vistas como uma curiosidade na busca de uma nova forma de obter prazer. Dentro do sistema penitenciário, as mulheres que dão à luz durante o cumprimento da pena são bastante afetadas psicologicamente pelo rompimento com o novo filho. “Quando presas, elas costumam recorrer a comportamentos autodestrutivos, como tentativa de suicídio, falta de cuidado pessoal da saúde física e problemas psicológicos”, contou Maíra, responsável pela pesquisa. “Outro fator complicador é, por questões culturais, maior suscetibilidade de rejeição social, durante o cumprimento e após a pena. Nesse sentido, as mulheres costumam receber menos visitas no presídio que os homens, além de serem abandonadas pelo parceiro”, afirmou. O acúmulo dos fatores que resultam em uma maior vulnerabilidade social para as mulheres ao longo da vida por conta de experiências traumáticas, como desestruturação familiar, desemprego, violência física, sexual e doméstica, quando combinados com um sistema prisional “adoecedor”, aumentam as chances de agravamento de problemas com drogas e em consequência, para a reincidência criminal. "É preciso observar que quando se prende uma mulher, se quebra um núcleo familiar. A reintegração é difícil. Se uma mulher tem dificuldade nessa sociedade para avançar, é ainda pior para uma mulher presa", apontou Michel, o que deixa claro que se hoje as discussões sobre a marcha lenta dos avanços de direitos e cuidados do ser humano ainda são uma rotina, é porque ainda não aprendemos que não há avanços se alguém é deixado para trás. Foto: ITTC