Última clandestina brasileira conta como enfrentou perseguição durante décadas

Maria José Malheiros nasceu Maria Neide Araújo Moraes, mas durante muito tempo não pôde contar a ninguém seu verdadeiro nome nem visitar a família sem ser perseguida pela ditadura iniciada em 1964

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Maria José Malheiros nasceu Maria Neide Araújo Moraes, mas durante muito tempo não pôde contar a ninguém seu verdadeiro nome nem visitar a família sem ser perseguida pela ditadura iniciada em 1964 Por Paulo Victor Chagas, da Agência Brasil
Maria José Malheiros nasceu Maria Neide Araújo Moraes, mas durante muito tempo não pôde contar a ninguém seu verdadeiro nome nem visitar a família sem ser perseguida pela ditadura iniciada em 1964. Por vários anos, se esquivou de perguntas sobre seu passado, escondeu sua falsa identidade até de parentes e fugiu do regime militar por ser considerada a mais perigosa do seu grupo de militantes. “Você tem que falar o menos possível de você, de uma forma normal, pacata. Mas por dentro, você não vive assim”, confessa. Após receber nesta semana a notícia de que será indenizada pelo Estado pela perseguição sofrida, Maria José Malheiros, que durante algum tempo foi também Maria José Novaes, revelou que sempre teve que viver se escondendo. O sobrenome Malheiros foi o último a ser utilizado para escapar da repressão e é com ele que Maria José vive desde 1975. “Até mesmo pessoas muito próximas da minha família, eu tinha medo que descobrissem meu nome”, lembra a militante, que morou em uma casa da qual ninguém, além do seu companheiro, sabia o endereço. A fuga para não ser presa e a estratégia do grupo a que pertencia, a Ação Popular Marxista-Leninista, fizeram com que Maria José passasse grande parte do período militar percorrendo cidades brasileiras na mira dos militares, até que decidiu sair do país. Em 1982, a ditadura já passava por período de abertura política, mas a possibilidade de ser descoberta a qualquer momento fez com que a militante, mesmo assim, fugisse desse “medo permanente”. Ao se mudar para a França, constituiu nova família, mas a insegurança sobre a sua identidade e a sua memória permaneceram. No país europeu, Maria José só foi contar parte de sua história a seu primeiro filho quando ele já tinha 17 anos. “Ele acabou adotando aquele modo de viver de jamais fazer perguntas, porque sabia que eu não podia responder. Até hoje, é como se houvesse uma espécie de pudor, como se ainda fosse perigoso falar”. Desde 1969, quando completou a maioridade, Maria José Malheiros evita lidar com as memórias de seus diferentes nomes. Essas marcas fizeram com que ela escondesse até hoje trechos do seu passado de militante política, mas seu relato começa com a atuação no movimento estudantil aos 16 anos. Militante, sindicalista e perseguida Chargista no jornal O Popular, em Goiânia, Maria José Malheiros ilustrava os editoriais. Nas duas vezes em que suas charges escaparam à censura, o jornal foi fechado. “A charge era imposta pelo próprio diretor do jornal, mas a maioria das vezes eu tinha uma relativa liberdade”, conta. Na segunda vez, os exemplares foram destruídos e ela, mandada embora. Maria José foi presa duas vezes, ainda menor de idade, pelas atividades de militância que desenvolvia. Depois da maioridade, acabou escapando da detenção e da tortura, o que contribuiu para que se criasse, perante os órgãos repressores, a imagem de que era “perigosa”. “Como dizia meu companheiro na época: 'no dia em que eles te prenderem, eles te matam'”. Ao se mudar para São Paulo, desta vez sob o codinome de Mariana, foi destacada pela Ação Popular para atuar como militante no movimento bancário. Lá, iniciou um trabalho sindicalista que consistia em debater com os colegas as condições de trabalho e salário dos bancários, mas principalmente a luta contra a ditadura. “Havia também um trabalho mais clandestino e amplo, de panfletagem e de denúncia à situação política do país”, lembra ela. “Era um período muito difícil. Qualquer coisa, qualquer palavra poderia nos levar à prisão”. E realmente levou. Todos os militantes nessa operação bancária foram presos, menos Maria José. Avisada de que a polícia chegaria ao banco, ela saiu a tempo. “A partir desse momento foi uma [vida de] clandestinidade completa, com a polícia me procurando com foto e tudo”. Com a fuga para a Bahia, deixou mais uma vez de trabalhar, fato hoje reconhecido pelo Estado. Maria José vai receber mensalmente R$ 1.584 como reparação econômica, além de parcela única de R$ 153.424 como dívida retroativa pela perda de seus vínculos com o trabalho. Ao morar em Vitória da Conquista e participar do movimento campesino, a então Maria Neide passou a se chamar Maria José Novaes, pois foi registrada como filha do dirigente da Ação Popular e do PCdoB, José Gomes Novaes. Quando se mudou para Salvador, Maria José teve nova certidão de nascimento, agora com o sobrenome Malheiros, graças à “coragem” de sua mãe. “Ela teve que subornar uma pessoa para fazer a identidade para mim, sem que eu estivesse presente na segurança pública e sem colocar meus dados no arquivo”, revela Maria José Malheiros. Caminho para a liberdade A Lei da Anistia de 1979 foi a primeira oportunidade de conseguir regularizar sua situação. Maria José conta que não solicitou os documentos por decisão do partido. Após se mudar do Brasil, ela voltou em 1984 para tentar ter seu verdadeiro nome reconhecido, porém mais uma vez sem sucesso. Quase duas décadas depois, não foi uma decisão fácil para Maria José entrar com pedido de anistia, em 2011, numa das mais de 80 Caravanas da Anistia promovidas pelo governo federal nos últimos anos. O presidente da Comissão da Anistia, Paulo Abrão, explica que demorou a convencê-la a confiar na resposta que o Estado daria a ela. “Ela me procurou antes de ingressar com o processo de anistia, ainda quando tinha dúvidas se deveria ou não sair da clandestinidade”, conta. Segundo o presidente, este caso é exemplo para que outras pessoas “possam ter a convicção de que democracia é diferente de ditadura e que a ditadura foi derrotada”. A aceitação da própria identidade foi também um obstáculo para Maria José, que nunca se sentia segura quanto a alguém descobrir que ainda está viva “com um nome que é falso”. “Eu vivia na contradição de estar sempre vivendo com outro nome, era como se eu não fosse eu mesma, se não fosse uma pessoa completa”. Diante disso, uma solução inédita da Comissão de Anistia deu o direito a Maria José de ter seu atual nome reconhecido legalmente. “Viver com o nome falso trazia a ela consequências até os dias de hoje, com receios e traumas que a impediam de ter uma vida plena”, explica Paulo Abrão. Maria José Malheiros retornou diversas vezes ao Brasil, mas sempre ficava receosa de desembarcar em São Paulo e no Rio de Janeiro. “Eu passei anos e anos sem caminhar na rua. Eu descia em Brasília, e meus pais iam me buscar de carro para evitar que eu fosse vista em Goiânia”, rememora. Como entrou com o pedido de anistia política, ela chegou a passar alguns meses no Brasil, mas conta que só começou a armazenar fotos, por exemplo, depois de 24 de outubro do ano passado, quando seu caso foi julgado na 76ª Caravana de Anistia. “Todas as fotos da família foram destruídas. Clandestino não tem imagem”. Trabalhando na prefeitura de Paris, Maria José Malheiros ainda não sabe quando retornará ao Brasil para regularizar seus nomes de nascimento e de vida, mas disse que, se pudesse, voltaria imediatamente ao cartório onde foi registrada, no interior da Bahia. “O pedido de anistia me dava essa segurança. Se encontro alguém que olha meus documentos e vê que eu não tenho o nome com o qual ela me conheceu, não tem problema. Eu posso falar disso abertamente. Isso era importante para mim”.