Um clássico é uma música que nunca terminou de dizer...

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No último 30 de junho, após a final da Copa do Mundo, o Brasil inteiro pôde ouvir o famoso movimento coral da Nona Sinfonia de Beethoven, cujos versos foram extraídos da Ode à Alegria, de Schiller. A música foi a trilha sonora da comemoração televisiva do pentacampeonato. O significado da cena vai além do fato de se tratar de um ícone alemão sendo usado, com o direito conquistado nos campos, para louvar a glória de seus verdugos.

Não era apenas um sarcástico desfile militar na praça pública da capital subjugada. Havia ali um contraste: os alemães simbolizavam a sisudez, o peso, a frieza, a retidão e a dureza dos gestos; os canarinhos a alegria, a leveza, a ternura, os gestos curvos e elásticos. A sobreposição da Nona Sinfonia às imagens das ruas estabelecia um paralelo entre a sala de concerto e o carnaval, identificando Beethoven com os valores atribuídos ao futebol de seus compatriotas, em oposição ao Olodum e o samba (tocado pelos próprios jogadores brasileiros).

Esse fato emblemático ajuda a entender como a música clássica se insere hoje na vida de milhões de brasileiros. Questionados sobre o que achavam da música clássica, transeuntes da Avenida Paulista reagiram de maneira muito similar, identificando-a a uma certa pompa. Uns, defendendo-a, atribuíram-lhe valores superiores, nobres; outros ironizaram imitando a postura altiva de um tenor de ópera. Invariavelmente, os nomes de Bach, Mozart e Beethoven eram citados. Ouvem música clássica? A maioria disse não, alegando, entre outras razões, falta de acesso. Há, em todo caso, uma imagem associada à música clássica, a mesma que foi aderida à Nona de Beethoven no episódio citado. Essa imagem é, em certa medida, corroborada pela casaca que muitos músicos eruditos ainda usam e um ritual um tanto obsoleto sempre revivido nas salas de concerto.

Quanto à mencionada falta de acesso, ela não é confirmada pelos fatos. Hoje há muitas gravações do repertório clássico disponíveis, desde as opções mais caras até as que são vendidas em séries nas bancas de jornal. Além dos CDs, há os DVDs, algumas transmissões televisivas e a internet. Apenas para citar o exemplo da cidade de São Paulo, há a rádio Cultura FM (103.3 Khz) e também uma intensa programação de concertos e recitais. A cidade conta com a excelente Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, a Osesp, que se apresenta semanalmente com opções econômicas de ingressos.

Se a música clássica é acessível, por que, então, ainda é pouco ouvida no Brasil? Yara Casnók, música e professora do Instituto de Artes da Unesp, em São Paulo, acredita que “as pessoas não são expostas ao repertório erudito e por isso não desenvolveram a disponibilidade auditiva solicitada por ela”. De fato, mesmo acessível, a música clássica ainda depende que se vá até ela, diferentemente da popular, que ocupa quase todos os nossos espaços cotidianos. Ainda há outro fato: a clássica depende, em primeiro lugar, de uma “disponibilidade emocional, afetiva e intelectual” para ouvir música e para mais nada.

Ela vem até você
Há momentos em que o repertório clássico se insere em nossas vidas, muito de mansinho, mas de maneira marcante. Lembra-se da trilha sonora de 2001, Uma Odisséia no Espaço, de Stanley Kubrick? A abertura com Assim Falava Zaratustra, de Richard Strauss; as naves bailando ao som da valsa Danúbio Azul, de Johann Strauss; e a misteriosa e cintilante Lux Aeterna, de György Ligeti, soando a cada aparição do monolito? E o magnífico Adagietto da Quinta Sinfonia de Gustav Mahler que colore toda a primeira cena do filme Morte em Veneza, de Visconti?

A música clássica às vezes aparece por intermédio da música popular. Na sua Ópera do Malandro, Chico Buarque faz citação explícita a várias obras famosas, como, por exemplo, a Carmen, de Georges Bizet. Também a canção final de Os Saltimbancos, aquela do “todos juntos somos fortes...”, é integralmente uma melodia de Beethoven.
Uma questão para quem quer começar a ouvir música clássica: por onde começar? O compositor Flo Menezes, diretor do Studio PANaroma de Música Eletroacústica, sugere que o iniciante comece ouvindo música orquestral, pois na orquestra “os instrumentos todos se vêem representados e o ouvido toma contato com as cores mais distintas da escrita musical”.

Tomemos um exemplo bastante conhecido e que pode ser uma boa porta de entrada: o Bolero, de Maurice Ravel. Essa obra é conhecida por sua clara estrutura formal, uma melodia que se repete “N” vezes, começando em pianíssimo (bem baixinho) e crescendo até culminar no fortíssimo (muito alto) final. Algo que por vezes passa despercebido é o hábil uso que Ravel faz das cores orquestrais. Cada reaparição da melodia é executada por um diferente instrumento de sopro (primeiro a flauta, depois o clarinete, o fagote e assim por diante), ou por uma combinação de sopros. O mesmo acontece com o acompanhamento rítmico, que começa apenas com um ostinato (repetição de um ritmo) na caixa e aos poucos vai ganhando corpo pelo acréscimo de outros instrumentos, sobretudo as cordas. Quando a orquestra toda já entrou em cena, as cordas executam o tema uma penúltima vez; a última será executada em tutti (por todos os instrumentos da orquestra), preparando para o encerramento.


Sobre sugestões de nomes de compositores, Flo propõe um curioso critério alfabético: a prioridade deve ser dada aos compositores cujas iniciais são B, M e S, “pois representam até hoje o que há de melhor na história da música em todos os períodos: Byrd, Bach, Beethoven, Berlioz, Brahms, Berg, Bartók, Berio, Boulez; Machaut, Monteverdi, Mozart, Mahler, Messiaen; Schubert, Schumann, Strauss, Schoenberg, Stravinsky, Stockhausen”. Sem dúvida, essa lista acrescenta, à tríade pop Bach/Mozart/Beethoven, mais alguns clássicos. É preciso mencionar ainda alguns W’s – Wagner e Webern –, V’s –Vivaldi, Varèse e Villa-Lobos –, P’s – Palestrina e Prokofiev – e ainda todo um alfabeto (Debussy, Ravel, Ives, Xenakis, Ligeti etc.).

Talvez o iniciante sinta-se um pouco perdido diante de tantos nomes. O importante é saber que, seja qual for a entrada, cada ouvinte descobre seu próprio caminho pelo universo da música clássica. Flo Menezes defende enfaticamente a necessidade de uma postura “experimental” no ato da escuta, ou seja, “estar aberto a toda experiência que seja distinta daquela que nos propõe o mercado de consumo”.
Bach, Beethoven, Brahms... vários germânicos foram citados. E entre os pentacampeões, o que ouvir? “Villa-Lobos e Chico Mello”, recomenda Yara. Flo indica, além de suas próprias obras, Gilberto Mendes “até os anos 70” e Willy Corrêa de Oliveira.

Podemos concluir com a pergunta: afinal, por que ouvir os clássicos? Talvez uma definição de Italo Calvino ajude a abrir o nosso apetite: “Um clássico é um livro [ou uma música] que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer”.