Um novo modelo de integração

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“Os que querem negar a importância da integração dos nossos povos sofrem de cegueira histórica. Claramente temos um passado comum e acredito que nosso destino comum é inevitável.” As palavras são de Rafael Correa, presidente do Equador, que a partir do próximo dia 10 de agosto será também presidente temporário da União de Nações Sul-Americanas (Unasul).

Não seria um exagero dizer que a integração regional é o pilar de sustentação da política externa equatoriana. Prova disso é a própria Constituição do país, aprovada no ano passado. O texto reserva um capítulo especial ao tema e define que “a integração será um objetivo estratégico do estado”. Não é à toa que Rafael Correa menciona tantas vezes o nome de Simón Bolívar em seus discursos sobre a necessidade de aproximar cada vez mais os países latino-americanos e construir a “pátria grande” com que sonharam os próceres da independência.

As loas à integração podem parecer, mas não são, um mero artifício retórico típico da esquerda anti-estadunidense. A última visita realizada por Hugo Chávez ao Equador, apenas um mês depois da reeleição de Correa, demonstrou que ambos os presidentes estão interessados no fortalecimento da integração regional e, mais, veem na crise econômica uma boa oportunidade para intensificar os acordos de cooperação. Pode-se dizer que os mesmos anseios integracionistas fazem parte da agenda de pelo menos oito dos doze governos sul-americanos.

“Não podemos continuar esperando que os países do norte mudem ou que do norte venham as decisões para aprimorar a arquitetura financeira internacional”, explica o presidente venezuelano. “Apesar de a Europa, os Estados Unidos e os grandes países capitalistas poderem se recuperar da crise num prazo relativamente curto, o mundo nunca mais será o mesmo. O paradigma neoliberal está pulverizado, as teses do livre-mercado, da flexibilização trabalhista, da mão invisível, tudo isso se acabou. Agora o mundo terá que buscar um novo caminho.”

É quase uma unanimidade que este caminho passa pela integração. E muitas medidas vêm sendo tomadas nesse sentido, principalmente dentro da Alternativa Bolivariana para as Américas (Alba). Criada por Venezuela e Cuba em clara oposição à fracassada Área de Livre Comércio das Américas (Alca), o bloco só fez crescer nos últimos anos e absorveu os governos de Bolívia, Nicarágua, Honduras, Dominica, São Vicente e Granadinas e, mais recentemente, Equador, que até então participava como observador.

Há uma série de críticas sobre o protagonismo venezuelano dentro da Alba, no sentido de que Chávez seria uma espécie de tutor que mantém seus pupilos ideologicamente alinhados ao bolivarianismo devido à sua generosidade petroleira. Com base nesse argumento, a oposição de todos esses países continuamente se queixa da suposta submissão de seus presidentes à liderança de Chávez. Mas a diplomacia chavista não pode ser definida com tanta simplicidade.

“A Venezuela promove e apoia dentro da Alba projetos comuns sobre seu petróleo, em que as empresas estatais de países como Equador podem investir na exploração das jazidas dentro da Venezuela”, explica Eduardo Gudynas, analista do Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES). “Compartilha-se, assim, um recurso estratégico. O Brasil, por exemplo, nunca aceitou esse mecanismo. A Petrobras não divide nada e, pelo contrário, tenta expandir-se sobre os países vizinhos.”

Gudynas classifica a Alba como uma “trama de acordos de assistência e complementação econômica, social e cultural”, ao contrário da Unasul, que seria muito mais um fórum de discussão política e de busca de consensos regionais. Não se trata, portanto, de dois blocos que competem entre si pelos “corações e mentes” dos governos latino-americanos. Dispõem de objetivos diferentes e por isso países como Venezuela, Bolívia e Equador, ao mesmo tempo em que trabalham pelo crescimento da Alba, fazem o mesmo pela Unasul.

Aliás, para Julio Oleas, assessor do Ministério de Relações Exteriores equatoriano, o continente está assistindo a um fenômeno interessante dentro do novo processo de integração regional. Nele, “vários grupos com objetivos integracionistas estão estabelecendo uma espécie de competição entre si, o que pode ser muito benéfico para os interesses da geopolítica latino-americana.”

Oleas explica que a Alba tem avançado mais que a Unasul em determinadas questões, até porque seu caráter ideológico permite uma celeridade na assinatura de acordos que a incessante busca de consensos dentro da Unasul, para o bem ou para o mal, impede. O maior exemplo talvez seja o projeto de unidade financeira, a estrela dos olhos de Correa, Evo Morales e Chávez, que pretende diminuir a dependência regional de dólares. Por isso está sendo seriamente estudada dentro da Alba a criação do Sucre (Sistema Único de Compensação Regional) e a confecção de acordos bilaterais que criem mecanismos próprios de transação comercial e financeira que dispensem a necessidade de moeda estadunidense.

Outra aposta dos países da Alba é o Banco do Sul. Nas palavras de Chávez, “está tudo pronto, os acordos técnicos já estão preparados, só falta colocar o dinheiro.” A intenção é que o organismo comece a funcionar com um capital inicial de 10 bilhões de dólares. O dinheiro seria utilizado para financiar o mesmo tipo de projetos que até hoje em dia eram bancados com recursos do Banco Mundial, Fundo Monetário Internacional e outros organismos multilaterais de crédito.

Obstáculos

São muitos os desafios a serem enfrentados pela Unasul nesta terceira reunião de cúpula, que desta vez se realiza em Quito. Sob a presidência do Equador, o bloco buscará consolidar os conselhos – já existentes – de Defesa, Saúde e Energia. “Também nos esforçaremos para que a maior quantidade possível de grupos de trabalho se converta em conselhos devidamente constituídos”, sustenta Julio Oleas. Outra prioridade será a constituição de uma secretaria-geral permanente na cidade de Quito, que é a sede da Unasul. Para tanto, a diplomacia equatoriana terá que vencer a resistência do Uruguai, que se nega terminantemente a aceitar o nome de Nestor Kirchner para o cargo de “primeiro-ministro” do bloco.

Esta é uma pequena mostra não só de que entrevero argentino-uruguaio pela instalação de uma indústria de papel e celulose na fronteira entre os dois países continua ressoando, mas também de uma das maiores barreiras à integração regional: os conflitos diplomáticos sul-americanos. E são vários. Equador e Colômbia estão com as relações bilaterais rompidas desde março de 2008, quando o exército colombiano bombardeou um acampamento das FARC em território equatoriano e executou pelo menos 25 pessoas. O Peru sustenta uma demanda internacional contra o Chile pela definição de limites marítimos. Caracas não gostou do asilo concedido pelo governo peruano a políticos investigados por corrupção, e a Bolívia está descontente com Lima pelos mesmos motivos. O Paraguai exige uma renegociação dos contratos de venda de eletricidade pela usina de Itaipu, na fronteira com Brasil. Lula já teve seus problemas com Equador e Bolívia por questões econômicas. La Paz tem uma pendência histórica com o Chile por uma saída ao Pacífico, e frequentemente ganham a atenção da imprensa declarações nacionalistas de militares e funcionários de governos sul-americanos.

Apesar disso, o chanceler chileno Mariano Fernández acredita que a situação melhorou muito nos últimos tempos. Nunca é demais recordar que a última guerra sul-americana ocorreu em 1995, quando Alberto Fujimori conduziu tropas peruanas a um pequeno território equatoriano na Cordilheira do Condor. Foi a Guerra do Cenepa. De lá para cá, os enfrentamentos bélicos entre os países vizinhos parecem ter se transformado em algo anacrônico e inaceitável. A incursão colombiana no Equador, por exemplo, foi dura e imediatamente condenada pelo Grupo do Rio e pela Organização de Estados Americanos (OEA). Talvez pela primeira vez desde a independência, um conflito armado – sua iminência ou possibilidade – não faz parte da realidade regional.

“Durante muitos anos tivemos países liderados por caudilhos civis e militares que preferiram explorar rivalidades internacionais, principalmente em temas fronteiriços, para obter coesão interna em torno de seus governos”, lembra o ministro de Relações Exteriores chileno. “Isso mudou, especialmente depois do fim das ditaduras, cujo legado de injustiça deu espaço a um continente onde praticamente todos os governantes são eleitos de maneira democrática. Podemos dizer, sem ambiguidades, que na América Latina democracia é sinônimo de integração e integração é sinônimo de democracia.”

Mariano Fernández pontua, ainda, a gradual mudança de posição de alguns países do continente na divisão internacional do trabalho. Historicamente condenada a produzir matérias-primas, vendê-las à Europa e aos Estados Unidos e comprar-lhes produtos industrializados, relegando o comércio intrarregional à última das prioridades, hoje as relações financeiras dentro da América do Sul se incrementaram bastante. O caso do Chile é um bom exemplo. Em 1958, a economia chilena se pautava unicamente no cobre, responsável por 90 % das exportações. Aproximadamente 50 % das vendas externas se dirigiam a Europa e outros 40 % aos Estados Unidos. “Hoje o Chile tem no cobre apenas 45 % de suas exportações. Há uma enorme diversificação de produtos, dos quais 30 % vão para a Ásia, 30 % à Europa, 20 % à América do Norte e 20 % à América Latina”, sublinha Fernández.

A presença do Brasil

O cada vez mais intenso intercâmbio comercial entre os países sul-americanos é um dos pontos nevrálgicos da integração. E muitas vozes dizem que um processo de aproximação regional não pode existir sem uma sólida associação econômica. “Para que exista uma integração efetiva, os países vizinhos devem ser também os primeiros sócios comerciais uns dos outros”, comenta Guillaume Long, da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), em Quito. “Isso é o que acontece com a União Europeia. Mas na América Latina o principal parceiro comercial da maioria dos países são os Estados Unidos. A Comunidade Andina de Nações (CAN) exporta entre si apenas 15 % de suas vendas internacionais.”

Aqui, no entanto, começa outro problema, que se reflete na presença de um país hegemônico dentro do continente – o Brasil. Ninguém coloca em questão a força da economia brasileira dentro da América do Sul, mas, se algo incomoda bastante os novos governos vizinhos, é o “subimperialismo” brasileiro. São históricas as queixas de Bolívia, Uruguai e Paraguai dentro do Mercosul. Em praticamente todas as reuniões de cúpula do bloco se ouvem reclamos de que, do jeito que estão as coisas, o Brasil tem sido o maior privilegiado com a união aduaneira.

Fora do Mercosul, uma prova da presença cada vez mais ostensiva da economia brasileira na região é a Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, mais conhecido como Iirsa, que é financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES).

“Isso tem a ver com a resistência do Brasil em promover bancos de desenvolvimento alternativos, como o Banco do Sul. O BNDES tem seus próprios interesses, e as grandes empresas de infraestrutura brasileiras se comportam como empresas transnacionais de qualquer lugar do mundo”, explica Julio Oleas. “O Iirsa é precisamente um dos temas de conflito da Unasul, um dos pontos quentes que devem ser superados para que possamos ir em direção de um novo sistema de integração.”

Para além das vantagens comerciais e financeiras, a diplomacia equatoriana acredita que a Unasul deve defender certos pontos de solidariedade. Oleas deixa claro que uma integração pautada exclusivamente na venda de bens e serviços gera disparidades internas e não interessa ao país. “Devemos ter uma percepção comum mais clara em política social, infraestrutura, manejo de energia e planificação territorial que não passe pelo mesmo caminho de integração comercial que atravessamos na segunda metade do século XX. Estamos nos referindo a um novo processo”, conclui. Um dos principais objetivos desta mudança de paradigmas é acabar com as chamadas assimetrias regionais – que apenas são agravadas por iniciativas como o Iirsa.

Por essas e outras, Eduardo Gudynas acredita que a Unasul é, em alguns aspectos, um retrocesso ao processo de integração. Mais que nada, porque o tratado que constituiu o novo bloco regional sumiu com elementos substanciais da integração sul-americana, tais como a redução das assimetrias entre grandes e pequenas economias e a coordenação produtiva.

“A Unasul terminou por legitimar um processo de integração sul-americana e não latino-americana. Essa foi uma ideia apresentada pela primeira vez por Fernando Henrique Cardoso, em 2000. FHC considerava que México, América Central e Caribe já estavam sob a influência dos Estados Unidos, e que o Brasil poderia liderar na América do Sul”, argumenta Gudynas. “O governo Lula aprofundou-se na mesma linha”, critica.