Uma guerra sem sentido

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Os terroristas e guerrilheiros não são forças convencionais. A sua conduta não se rege pelas regras de combate que os nossos comandantes treinaram nas academias e escolas de guerra. E estes grupos clandestinos são versáteis, mudando de forma e cor conforme se movem de um Estado falho para outro, para planejar um ataque terrorista e desaparecer na sombra. Estamos lutando com as ferramentas erradas. Estamos a combater as pessoas erradas. Estamos no lado errado da história. E seremos derrotados no Afeganistão como o seremos no Iraque.

O custo da guerra do Afeganistão aumenta. Dezenas de milhares de civis afegãos foram mortos ou feridos. O mês de julho foi o mais mortífero na guerra para os militares da Otan, com pelo menos 50 mortos, incluindo 26 norte-americanos. Ataques com minas na estrada tendo como alvo as forças da coligação engrossam o número de mortos e feridos. Em junho, a contagem deste tipo de ataques, igualmente designados engenhos explosivos improvisados, atingiram os 736, um recorde pelo quarto mês consecutivo. O número aumentou de 361 em Março para 407 em abril e para 465 em maio. A decisão do presidente Obama de enviar mais 21 mil soldados norte-americanos para o Afeganistão, aumentou a nossa presença para 57 mil militares. No total espera-se que aumente até pelo menos 68 mil até ao final de 2009. Significará apenas mais mortes, mais combate e será infrutífero.

Demos de cara com uma confusa miscelânea de grupos armados que incluem gangues criminosas, traficantes de drogas, as milícias pashtun e tajique, redes de raptores, esquadrões de morte e mercenários. Estamos encurralados numa guerra civil. Os pashtuns, que são a maioria dos talibãs e que são os governantes tradicionais do Afeganistão debatem-se com os tajiques e com os uzbeques que constituem a Aliança do Norte, que, com a ajuda externa, ganharam a guerra civil de 2001. A antiga Aliança do Norte domina agora o governo incompetente e corrupto. É profundamente odiada. E irá cair connosco.

Estamos perdendo a guerra no Afeganistão. Há oito anos, quando invadimos o país, os talibãs controlavam cerca de 75% do Afeganistão. Hoje o seu domínio regrediu para cerca de metade do país. Os talibãs são os senhores do comércio de papoulas, que gera cerca de 300 milhões de dólares anuais. Levam a cabo, de uma forma descarada, ataques em Cabul, a capital, e os estrangeiros, temendo raptos, raramente passeiam pelas ruas da maioria das cidades afegãs. Deslocarmo-nos até ao interior sem a protecção de militares da Otan, onde vivem 80% dos afegãos é correr perigo de vida. No entanto, jornalistas mais audazes entrevistam oficiais talibãs em cafés da baixa de Cabul.

Osama Bin Laden tornou-se, para divertimento do resto do mundo, no "Onde está Wally?" do Médio Oriente. Se retirarmos as balas e as bombas temos uma comédia de Gilbert e Sullivan.

Ninguém parece saber explicar a razão pela qual estamos no Afeganistão. É para capturar Bin Laden e a Al-Qaeda? É para consolidar o progresso? Declaramos guerra aos talibãs? Estamos  construindo uma democracia? Estamos combatendo terroristas lá para não termos que os combater aqui? Estamos "libertando" as mulheres do Afeganistão? O absurdo das perguntas, utilizadas como argumentos falaciosos, expõem o absurdo da guerra. A confusão dos objetivos espelha a confusão no terreno. Não sabemos o que estamos a fazer.

O general Stanly MacChrystal, o novo comandante das tropas norte-americanas e da Otan no Afeganistão, anunciou recentemente que as forças da coligação devem proceder a uma "mudança cultural" no país. Referiu que devem afastar-se da sua orientação habitual de combate e passar à proteção de civis. Entende que os ataques aéreos que têm causado centenas de mortes entre civis são uma ferramenta poderosa de recrutamento para os talibãs. O objetivo é um pouco ambicioso mas a realidade da guerra desafia a sua implementação. As forças da Otan pedirão apoio aéreo sempre que estiverem sob ataque. Este é o procedimento que os militares debaixo de fogo têm. Não se podem dar ao luxo de comunicar com a população civil primeiro. As perguntas serão feitas mais tarde.

O ataque aéreo de 4 de maio na província de Farah, que matou dezenas de civis, violou ordens em vigor sobre ataques aéreos, bem como o da província de Kandahar na semana passada em que quatro civis foram mortos e 13 foram feridos. O ataque da Otan visava uma povoação no distrito de Shawalikot. No hospital da capital da província, os habitantes feridos relataram à AP que os helicópteros de ataque começaram a bombardear as suas casas cerca das 22h30 de quarta-feira. Um homem referiu que a sua neta de 3 anos de idade foi morta. O combate cria as suas próprias regras e os civis são quase sempre os perdedores.

A ofensiva das forças da Otan na província de Helmand seguirá o habitual cenário desenhado pelos comandantes militares, que sabem muito de sistemas de armamento e de exércitos convencionais e pouco sobre as nuances de uma guerra irregular. Os talibãs irão provavelmente retirar-se para os santuários no Paquistão. Nós declararemos a operação como um sucesso. A nossa presença será reduzida. E os talibãs rastejarão de volta para as áreas que declarámos "limpas". As minas na estrada continuarão a sua contagem mortal. Soldados e fuzileiros, frustrados de tentar combater um inimigo esquivo e muitas vezes invisível, sairão numa furiosa invectiva contra fantasmas o que irá aumentar os números de civis mortos. É um jogo mais antigo que a própria guerrilha e ainda assim, cada geração de guerreiros julga possuir a chave mágica da vitória.

Asseguramo-nos que o Iraque e o Afeganistão são Estados falhados. De seguida na nossa lista aparece o Paquistão. O Paquistão, tal como Iraque e o Afeganistão, é uma construção bizarra dos poderes ocidentais que desenharam fronteiras artificiais e arbitrárias que os clãs e os grupos étnicos divididos por estas linhas ignoram. Enquanto o Paquistão se foi desenvolvendo, o seu exército buscou legitimidade no Islão militante. Foi o exército paquistanês que criou os talibãs. Os paquistaneses determinaram como eram aplicados os biliões de dólares de ajuda norte-americana à resistência durante a guerra contra a ocupação soviética do Afeganistão, que por pouco não foi quase todo para as alas mais extremistas do movimento de resistência afegão. Os talibãs, aos olhos do Paquistão, não são apenas um uma arma eficaz para derrotar invasores estrangeiros sejam russos ou americanos, mas também um baluarte contra a Índia.

Os muçulmanos radicais em Cabul jamais irão construir uma aliança com a Índia contra o Paquistão. E a Índia, não o Afeganistão, é a preocupação principal do Paquistão.

O Paquistão, não importa quantos biliões lhes dermos, irá sempre proteger e promover os talibãs, que é sabido que irão herdar o Afeganistão. E a bem publicitada batalha do governo com os talibãs no Vale de Swat do Paquistão, mais do que um novo começo, é uma charada coreografada que nada faz para quebrar esta aliança diabólica.

A única forma de derrotar grupos terroristas é isolá-los dentro das suas próprias sociedades e isto requer afastar a população dos radicais. É uma guerra política, econômica e cultural. A terrível estatística final da ocupação militar e violência é sempre contraproducente para este tipo de batalha, gera sempre mais insurreitos do que os que elimina. Legitima sempre o terrorismo. Enquanto destroçamos recursos e vidas, o verdadeiro inimigo, a Al-Qaeda, mudou-se criando redes na Indonésia, Paquistão, Somália, Sudão e Marrocos e comunidades muçulmanas deprimidas como as que existem em Lyon em França ou na área de Brixton em Londres. Não faltam esconderijos no mundo onde a Al-Qaeda possa esconder-se e operar. Não necessita do Afeganistão e nós também não.

Tradução de Cláudia Belchior para Esquerda.net.