Uma medida indigesta

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Foto: Antonio Cruz/ABrFoto: Antonio Cruz/Abr

Sentadas em carteiras escolares, crianças sorridentes desfilam no vídeo. Ao fundo, a voz do narrador explica a razão da felicidade e comemora. “Qual é a receita de um sorriso? Pode parecer simples, mas o que muitas vezes fica escondido, o que não percebemos, é que atrás dessa satisfação e desse momento existe muito trabalho para que isso aconteça”. Esse é o início do vídeo da SP Alimentação, a empresa que se tornou epicentro de denúncias acerca da merenda escolar em São Paulo. A peça, disponível na página eletrônica da empresa, ainda ostenta a seguinte informação: “especializada em administração de cozinhas e refeitórios em escolas, a SP Alimentação tornou-se líder de mercado em todo país”.

Porém, a empresa “líder de mercado” é investigada pelo Ministério Público de São Paulo, por suspeita de fraude na licitação feita pela prefeitura de São Paulo, em maio de 2007, no valor de R$ 259 milhões, o que pode ter se repetido em outras cidades. “Há claros indícios de superfaturamento e formação de cartel e existem provas de que houve inexecução parcial dos contratos dessas empresas”, afirma o promotor do Patrimônio Público e Social de São Paulo, Sílvio Antonio Marques. As investigações começaram em agosto de 2008, após o depoimento de uma pesquisadora da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), que em 2007 era contratada pela Secretaria de Gestão de São Paulo para avaliar a terceirização da merenda escolar.

Segundo José Ghiotto Neto, vice-presidente do Conselho de Alimentação Escolar, houve constatação de problemas como alimentos estragados, salsichas cortadas em três para render mais e proibição de servir mais de um pedaço de fruta a alunos. Ele havia entregado um relatório com os dados de 2007 e 2008, denunciando o “prêmio economia” de R$ 40, que seria dado às merendeiras que conseguissem reduzir o consumo da merenda escolar. “O escândalo de fraudes no fornecimento de alimentação escolar em São Paulo trouxe para o debate uma das estratégias de privatização do ensino. O escândalo paulista é ao mesmo tempo parte do processo endêmico de corrupção, mas também fruto do processo de lenta privatização da educação”, sustenta Luiz Araújo, ex-secretário de Educação de Belém.

Enquanto as investigações correm, o Ministério Público paulista encaminhou à prefeitura da cidade uma recomendação para que aconteça a suspensão dos contratos de fornecimento da merenda para a rede pública de ensino. Já a empresa SP Alimentação nega as acusações e informa, em nota, que “desde a década de 50, quando Getúlio Vargas instituiu a merenda escolar, não se fazia nada para melhorar a alimentação das crianças. A terceirização foi a primeira medida neste sentido”. O informe é assinado pelo Sindicato das Empresas Fornecedoras de Alimentação Escolar, Merenda Escolar e Assemelhados do Estado de São Paulo (Sindimerenda) e demais entidades representativas do setor em nível estadual e nacional e questiona os dados da Fipe. “As refeições servidas pelas empresas têm um custo menor, qualidade superior e alto nível nutricional”, alega a nota.

Terceirização O escândalo não é exclusividade de São Paulo e mostra uma das faces da omissão do Estado em seu dever de prover alimentação adequada para os educandos, como alerta a nutricionista Sonia Lucena de Andrade. “Jamais um sistema terceirizado vai construir bons hábitos alimentares. Isso não acontece em nenhum lugar do mundo e não vai acontecer no Brasil, que sofre com uma fiscalização inadequada.” Andrade também faz parte do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea) e é membro da Associação Brasileira de Nutrição. Ela lembra que o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), implantado em 1955 e com assessoria do sociólogo Josué de Castro, garante a alimentação escolar dos alunos da educação infantil (creches e pré-escola) e do ensino fundamental, matriculados em escolas públicas e filantrópicas, inclusive das escolas indígenas. “O objetivo é atender parte das necessidades nutricionais dos alunos, contribuindo para o crescimento, desenvolvimento, aprendizagem e o rendimento escolar”, avalia Andrade.

As críticas da nutricionista sobre a terceirização são incisivas e apontam a importância de a alimentação escolar estar integrada com o plano pedagógico da escola. “Os trabalhadores terceirizados têm vínculo empregatício frágil e são constantemente pressionados. Além disso, algumas empresas se utilizam muitas vezes das próprias cozinhas da escola e não raro dos funcionários públicos da escola, sem comentar ainda a ideia de adquirir o mais barato e a preocupação nula com o balanceamento nutricional dos alimentos”, avalia a conselheira. Ela também explica que “a relação entre a educação e a merenda escolar é um excelente espaço para transferir a conjunção dos alimentos que fazem bem à saúde, para realizar a manutenção da cultura alimentar do seu povo e para trabalhar os temas transversais em sala de aula”.

Outra especialista no assunto, Marília Leão, presidente da Ação Brasileira pela Nutrição e Direitos Humanos (Abrandh) também enxerga muitos problemas na terceirização da alimentação escolar. “As experiências que vimos de terceirização é que a qualidade da alimentação baixa muito. Eles privilegiam a alimentação industrializada e de baixa nutrição porque é mais barata. Além disso, ao colocar a merenda nas mãos de empresas, você perde o vínculo com a atividade pedagógica”, afirma Leão.

A opinião também é compartilhada por Vanessa Schotz, da organização não-governamental Fase. “A alimentação tem que fazer parte do projeto pedagógico, além de que pode promover a economia local. Por que comprar alimentação industrializada, que vem do outro lado do país, se você pode comprar os alimentos frescos, mais saudáveis? Estamos falando da possibilidade de uma alimentação livre dos agrotóxicos e dos transgênicos, por exemplo”, argumenta. Schotz integra um conselho composto por membros da sociedade civil, representantes do governo e de diversos segmentos sociais, que acompanharam a construção conjunta do projeto de lei nº 178/08, que dispõe sobre alimentação escolar. Encaminhado em 2008 pelo Poder Executivo ao Congresso Nacional e aprovado sem alterações pela Câmara Federal, o projeto atualmente encontra-se no Senado e pode criar um marco regulatório para o Pnae, além de ampliar suas ações aos alunos do ensino médio, impor limites à terceirização e obrigar à aquisição de uma parte da alimentação escolar proveniente da agricultura familiar, uma forma de estimular o consumo da alimentação de sua região e garantir a qualidade dos produtos.

O lobby das empresas “Não sei exatamente de onde surgiu esta medida provisória, mas acontece que estávamos no Fórum Social Mundial, em Belém, e ela caiu em nossas cabeças. Isso foi no dia 28 de janeiro”, conta Vanessa Schotz. Ela se refere à medida provisória nº 455/09, que regulamenta a alimentação escolar. Trata-se de quase uma cópia da lei nº 178/08, porém com diferenças que prejudicam o espírito original do texto. Um dos pontos previa, por exemplo, que do total dos recursos financeiros do Pnae, no mínimo 30% deveria ser utilizado na aquisição de alimentos produzidos diretamente pela agricultura familiar, priorizando os assentamentos da reforma agrária, as comunidades tradicionais indígenas e comunidades quilombolas.

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“Avalia-se que as alterações feitas pela MP no texto original do PL dificultam a participação dos camponeses e agricultores familiares como fornecedores de produtos para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (Pnae), abrindo as portas para a terceirização da alimentação escolar, entre outros retrocessos”, denuncia a carta aberta da sociedade civil, que pede o envio de assinaturas para “reforçar um posicionamento contrário a este retrocesso”. O texto original também apresentava limites sobre a terceirização da alimentação escolar. Já na nova versão foi excluído o parágrafo que impediria a terceirização e que assegurava “a aquisição, o preparo e a distribuição da alimentação escolar deverão ser realizados por ente público”, além de colocar imposições que atravancam a aquisição dos alimentos provenientes da agricultura familiar, quando não a impedem. “A MP deveria assegurar a não triangulação, a relação direta com o produtor, e no entanto coloca as obrigações do Estado como se fossem do agricultor familiar”, alerta Schotz.

O novo texto retira o dispositivo que exigia que, na elaboração dos cardápios, fossem incluídos alimentos a serem consumidos em seu estado in natura, como frutas e verduras, e há emendas que propõem o fim da obrigatoriedade do acompanhamento de um nutricionista no planejamento das refeições. “Essa atitude traduz o compromisso expresso que o governo tem com setores das empresas de distribuição de refeições que empurram goela abaixo todas as porcarias imagináveis aos nossos jovens e crianças. A alimentação escolar como parte integrante do processo pedagógico da escola pública não pode ser objeto de comércio. Terceirizar a alimentação escolar é abrir portas para a privatização do ensino público”, denuncia a carta de repúdio à MP 455/09, assinada por professores, intelectuais, movimentos sociais e sindical e a sociedade civil. “Este é um movimento das empresas de refeição coletiva e das indústrias de alimentos na direção de não perder esse negócio. Estamos falando em 44 milhões de refeições por dia e um orçamento previsto de R$ 2,1 bilhões”, alerta o presidente do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional, Renato Maluf, que assina uma carta em nome do Consea ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O fato é que a MP apresentada no dia 28 de janeiro está tramitando na Câmara Federal e recebeu 70 emendas em quase três semanas, um número que serve como parâmetro para se ter noção do “vespeiro” que é o assunto. Do total de emendas, 12 tratam da agricultura familiar, como a sugestão do deputado Nazareno Fontinelis (PT-PI) de alteração na redação do artigo nº 14, para que as exigências burocráticas não inviabilizem a aquisição dos alimentos da agricultura familiar. Ou ainda o pedido do deputado Paulo Renato Souza (PSDB-SP) de supressão do percentual mínimo e exigência de licitação para a compra dos alimentos.

A expectativa é que, até o final do mês de março, a medida seja votada e siga para o Senado. Enquanto isso, os movimentos que fizeram parte da construção do PL 175/08 correm contra o tempo para denunciar os retrocessos da MP e, ao mesmo tempo, exercer pressão sobre o Congresso. “Temos que mobilizar a sociedade para garantir que esta MP não seja aprovada com emendas que favoreçam apenas as grandes empresas”, defende Schotz. Não será uma batalha fácil. F