Uma só voz

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“Alguém precisa contar a história do mercado antes que o mercado escreva o epitáfio da democracia.” A frase do jornalista Eugênio Bucci, presidente da Radiobrás, pode soar um tanto apocalíptica aos ouvidos desavisados, mas dá a dimensão exata das relações entre poder econômico, mídia e valores democráticos no mundo atual. Com a concentração dos meios de comunicação nas mãos das grandes corporações, o direito à informação, prerrogativa básica de qualquer sociedade verdadeiramente livre, fica seriamente ameaçado.

A promíscua relação entre grupos econômicos e os meios de comunicação foi um dos assuntos centrais do III Fórum Social Mundial. O diretor do jornal francês Le Monde Diplomatique, Ignacio Ramonet, analisa que o conceito tradicional de mídia, tida como quarto poder, já não é mais válido. “Durante muito tempo foi colocada como quarto poder, que deveria defender os cidadãos dos abusos dos outros poderes. No entanto, a globalização econômica criou conglomerados midiáticos, e o objetivo de informar foi diluído entre outros interesses”, disse. Para ele, grupos gigantescos como o AOL/Time Warner não funcionam apenas como braço auxiliar do poder constituído, mas passam a fazer parte de seu próprio núcleo. “Eles se unem ao poder para oprimir o cidadão; este, que antes era oprimido pelo Executivo, agora é oprimido também pelo poder midiático”, apontou.

Suzanna George, representante da organização feminista Isis, tem visão semelhante à de Ramonet. Para ela, a forma invasiva de atuação dos meios de comunicação exerce influência brutal sobre as populações, moldando estereótipos convenientes e criando necessidades consumistas. “A mídia global é o que eram os missionários para os colonizadores, prepara o terreno para a conquista econômica”, acredita. Dessa forma, apenas as imagens que são de interesse dos grandes grupos capitalistas se perpetuam no imaginário das pessoas. “Todos viram histórias terríveis sobre os norte-americanos que sofreram no atentado de 11 de setembro, mas nada foi mostrado sobre os milhares de afegãos que morreram na guerra”, observa Susanna, que acrescenta: “Quando 44 mil pessoas morreram num terremoto na Turquia, em 1999, a única história contada pela mídia foi a de uma norte-americana que sobreviveu”.

Se os efeitos do neoliberalismo e da globalização econômica adquirem ares mais perversos nos países menos desenvolvidos, também é aí que os grandes conglomerados de comunicação se sentem à vontade para mostrar imenso poder, sem disfarces. Exemplo recente é o caso da Venezuela, em que a mídia, praticamente controlada pelo megaempresário Gustavo Cisneros, optou por fazer uma oposição sem nenhum freio ético ao governo de Hugo Chávez. Na tentativa de golpe que levou à presidência o empresário Pedro Carmona Estanga, as emissoras locais passaram a informação de que Chávez teria renunciado, versão que foi repercutida por toda a imprensa mundial. Omitiram a verdade de forma deliberada. E não se retrataram quando ficou claro que tudo não passou de armação.

Mesmo depois do fiasco, a postura da mídia venezuelana pouco mudou. Sua adesão aos oposicionistas envolve o falseamento de informações e alguns métodos no mínimo curiosos. A jornalista Blanca Eeckut, da Catia Te Ve, relata a criação de um sistema adotado pelas televisões locais chamado Solo una Voz. As emissoras comerciais fazem um pool de cobertura jornalística para que todos os seus telejornais sejam semelhantes na forma e no conteúdo. “Um só jornalista faz o trabalho para todos os meios. E quando eles não estão em rede, operando no Solo una Voz, fazem programas com o mesmo formato de entrevistas”, conta. Dessa forma, só as notícias que forem convenientes aos oposicionistas circulam, e pasteurizadas. “É muito comum você ter programas de debates em dois ou três canais, todos com pessoas só da oposição, que se revezam de uma para outra emissora”, atesta.

Não é apenas na Venezuela que a concentração dos meios de comunicação causa estragos. No próprio Brasil há exemplos à exaustão de manipulações da mídia que favoreceram o poder de turno. Não é à toa. Afinal, se o Brasil possui níveis de concentração de renda assustadores, nos meios de comunicação o cenário não é muito diferente. Daniel Herz, coordenador do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) e do Instituto de Pesquisas em Comunicação de Porto Alegre, divulgou em 2002 pesquisa revelando que a concentração das emissoras de televisão, rádio e meios impressos nas mãos dos grandes grupos praticamente dobrou na última década. Intitulado Os Donos da Mídia, o levantamento revela que seis redes privadas dominam o meio televisivo, e a elas estão ligados 668 outros veículos, sendo 296 emissoras de TV e 372 veículos de outros segmentos, como emissoras de rádio, jornais e revistas. Para Herz, a democratização da comunicação só será alcançada pela mobilização da população. “Sem se democratizar a comunicação, não se democratiza a sociedade”, acrescenta.

O caso norte-americano Em quase todas as discussões realizadas no III FSM sobre mídia, foi ressaltada a importância de existir uma mídia distante do poder, exercendo seu papel crítico, para que seja consolidada a democracia. E isso não se alcança somente com legislações ou por meio da tão reclamada liberdade de imprensa, condição fundamental para uma comunicação cidadã, mas nem sempre suficiente.

Tome-se o caso da mídia dos Estados Unidos. Com uma das imprensas mais livres do mundo, escorada em garantias institucionais, ainda assim a população norte-americana não consegue ter acesso a informações confiáveis. “A mídia é livre para reportar o que quiser, sem medo ou favor, mas não o faz”, explica Steve Rendall, analista sênior do grupo Fair – Justiça e Precisão na Reportagem. De acordo com ele, isso ocorre em função de interesses dos grandes conglomerados financeiros que dominam a comunicação nos EUA.

Rendall explica como esse domínio pode ser prejudicial. “Imagine-se como repórter do ABC News, importante telejornal norte-americano. Seu verdadeiro chefe é a companhia Walt Disney, o que significa que você terá de pensar duas vezes, se não quiser perder o emprego, antes de criticar filmes da Disney”, pontua. E o fato de nem todas as pessoas saberem da relação entre a Disney e a ABC, nem de situações semelhantes que ocorrem em outras empresas, torna a atuação da mídia ainda mais inescrupulosa. “Talvez a ABC seja a única rede que mantém por todo o país talkshows de direita, programas realmente racistas. Mesmo promovendo isso, a Disney se apresenta como a amigável família do entretenimento”.

Para Rendall, é importante conscientizar a sociedade do papel de “mercador” exercido pelos meios de comunicação. “Muita gente não entende qual é o produto das notícias na TV. Eles não vendem carros ou cervejas, porque quando você compra esses produtos o dinheiro não vai para a TV. A televisão vende o espectador, seus olhos, para os anunciantes de cerveja e carros. O espectador é uma commodity. Se as pessoas perceberem que são o produto, vão olhar a TV de um modo diferente”, acredita. A partir dessa conscientização, a população enxergaria as inúmeras possibilidades que a mídia pode proporcionar. “Temos de começar a compreender que as ondas no ar, as freqüências de rádio e TV, são um recurso precioso. Pertencem ao povo, que não sabe disso porque nos últimos oitenta anos elas foram tomadas pelos colonizadores empresariais. Tanto a televisão quanto o rádio têm grande potencial para a educação e para enriquecer a democracia”, esclarece.

Alguns já estão aproveitando esse potencial. Hoje multiplicam-se as rádios livres, movimento pela liberdade de expressão que tem se mostrado muito eficaz para ampliar o acesso à informação. A Alternative Radio é um exemplo. A rádio se mantém vendendo fitas de seus programas para outras emissoras comunitárias. Fundada em 1986 por David Barsamian, é usada como espaço de debates e controvérsias para trazer vozes que ficam à margem da grande mídia.

“Em cidades pobres, as pessoas têm apenas rádios, não videocassetes, computadores ou mesmo televisões. Isso torna o rádio uma mídia muito eficiente e adequada para informar”, esclarece Barsamian. E o mais importante é que não é necessário investimento muito grande ou técnicas apuradas para pôr uma emissora em funcionamento. Tanto é que já existem mais de 5 mil rádios comunitárias no Brasil. “Não é difícil fazer rádio. Para ser médico, é preciso ser muito especializado, muita informação específica. Mas para fazer este trabalho não tenho treinamento, bagagem ou formação em mídia. Sou totalmente autodidata”, conta Barsamian.

Resistência Mais que conscientização é necessário que as pessoas partam para a ação se quiserem realmente se informar de maneira precisa, e as mobilizações têm se mostrado uma forma eficiente de furar o bloqueio midiático das grandes corporações. Na Venezuela, à época do golpe contra Chávez, as rádios e TVs comunitárias foram fechadas logo nos primeiros momentos. “Os golpistas se preocuparam em não deixá-las ativas, pensaram que com isso desarticulariam toda a comunicação mais popular”, conta Blanca Eeckut. Mas a ação não surtiu o efeito esperado. Rapidamente, os chavistas construíram uma rede alternativa. “Internet, celulares e motoboys foram os principais meios de comunicação. Como a telefonia fixa não atinge os bairros mais pobres de Caracas, as pessoas desses lugares se organizavam por meio de celulares. Os que tinham computadores acessavam os sites mais confiáveis”, diz Blanca. A contra-informação era difundida de forma mais ampla por um exército de aproximadamente 1,5 mil motoboys que iam de quarteirão em quarteirão da capital Caracas transmitindo as novas. Para se organizar e chamar a atenção dos vizinhos, os sinos de chamada eram os postes de luz, que são de ferro. As pessoas começavam a bater neles com um martelo, e isso atraía outros moradores, que se juntavam ao grupo.

Outro exemplo citado por Barsamian é o dos zapatistas de Chiapas. “Sem dinheiro ou contas em bancos, eles tinham rádios e souberam usar a internet. Isso mostra que a mídia independente pode ser uma força dinâmica para avançar na mudança social e para ajudar as pessoas a superar o isolamento, que é uma forma de controle, de alienação”, defende. Para ele, é necessário utilizar os meios de comunicação como forma de integrar e globalizar as lutas democráticas. “Isoladas, as pessoas ficam com a impressão de que são as únicas a pensar diferente, enquanto milhões no mundo têm as mesmas idéias. A informação é o oxigênio da democracia, mas a mídia corporativa quer sufocar essa democracia. Precisamos abrir mais espaço para desenvolver nossa própria mídia.”