Verticalização, higienização e entristecimento de Belo Horizonte

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Eu não nasci em BH, mas me considero belo-horizontino. Nas zonas oeste, centro ou leste da cidade morei entre 1975 e 1990 e, dos 22 anos desde então, só em 2 ou 3 deixei de passar pelo menos 3 ou 4 meses na cidade. Creio conhecer algo de seus recovecos e seu jeito de estar no mundo. É, para mim, um paradigma da cidade-véu, a urbe que demanda uma iniciação mais complexa, dependente, em geral, de um(ns) guia(s), ao contrário de um Rio, Buenos Aires ou Nova York, cidades que se entregam e se oferecem, mesmo à caminhada aleatória, muito mais facilmente (cidades-vitrine). Nesse sentido, BH se parece mais a São Paulo -- urbes em que, se você começar a caminhar aleatoriamente em/ a partir do centro, você muito provavelmente não vai encontrar nada de importante, nada que a caracterize, nada que valha a pena conhecer. A cidade demanda uma exploração mais direcionada.

Durante as prefeituras da Frente Popular (1993-2008: Patrus Ananias, Célio de Castro, Fernando Pimentel), Belo Horizonte manteve uma especificidade que a distinguia de cidades como Porto Alegre e São Paulo: a inexistência do discurso antipetista. Até mesmo na imprensa, a diferença é notável: a RBS fez oposição enlouquecida aos governos petistas no Sul, mas PT-PCdoB-PSB governaram BH sem ser incomodados, absolutamente, pelos Diários Associados. A imprensa mineira é, sobretudo, governista, seja lá quem for que estiver no governo. Ela foi, claro, grande fiadora do sinistro acordo petucanista que transferiu o capital político da Frente Popular para uma prefeitura higienista, com nítidos traços fascistoides, como a de Márcio Lacerda. Num notável testemunho dos limites do poder-mídia de manipulação e em claríssima resposta, a cidade, mesmo tendo sido administrada durante 16 anos positivamente pela Frente Popular capitaneada pelo PT, deu a Marina Silva o primeiro lugar  no primeiro turno de 2010. Sim, a acreana Marina Silva bateu a belo-horizontina Dilma Rousseff em Belo Horizonte em 2010, caso o leitor não tenha notado, isso depois que o grande compadre e velho amigo petista de Dilma havia deixado a prefeitura com 90% de aprovação: recado mais claro, impossível.

O processo pelo qual se faz o traslado, via Fernando Pimentel (que administrativamente não foi mau prefeito, mas politicamente foi desastroso), da legitimidade da Frente Popular para a coalizão neofascista policial de Márcio Lacerda é um dos maiores estelionatos eleitorais do nosso tempo. Lacerda, figura que enriqueceu de forma estatal-nebulosa durante a ditadura, e que Aécio Neves ofereceu a Pimentel como a armadura da espúria aliança que se construiu em 2008, é uma espécie de Jânio Quadros em versão pós-moderna, cyberpunk e tecnocrata, delirando megalomaniacamente com uma urbe ordenada, higienizada, asséptica e, quase sempre, militarizada. Os belo-horizontinos notam(os) os efeitos no rosto da cidade, no seu desenho, na composição demográfica de seu centro, no funcionamento de seus aparatos de repressão e homogeneização (relativamente submetidos a algum controle popular durante os mandatos de Patrus e Célio, e desatados de forma brutal sob Lacerda) e, acima de tudo, em seu astral, sua respiração, seu axé – ou como você queira chamar esse plus que faz da cidade a cidade.

Belo Horizonte é hoje um espaço marcado por expulsões de artesãos e moradores de rua das áreas centrais, especulação imobiliária, segregação dos pobres, intensa verticalização, repetidas leis proibicionistas e crescente truculência da Guarda Municipal, esta atuando agora em parceria com a tradicional PM do tucanato. Com um trânsito insano, de absurda concentração de veículos dentro da Avenida do Contorno, Belo Horizonte cada vez mais replica de São Paulo o que São Paulo tem de pior. Continuam acontecendo muitas atividades interessantes na cidade, claro, mas ela é, hoje, nitidamente, mais segregada, previsível e higienizada, mais triste.

Belo Horizonte é uma cidade em que o prefeito, o dono do iate, predica aos conterrâneos que não deem comida a moradores de rua, em que decretos flagrantemente inconstitucionais, anti-ocupação-de-praça, por exemplo, passam a ser moeda corrente. Têm comparável responsabilidade nessa lástima o PSDB, o PT e, mais recentemente, o PcdoB, que havia congregado a oposição ao conluio até um certo momento, mas que não resistiu às ofertinhas de cargos. O PSB mineiro opera como uma espécie de sublegenda aecista, um laranja para a maracutaia. Para resumir, então: o partido de João Mangabeira e Miguel Arraes é o avalista chapa-branca para que o partido de Patrus Ananias e o partido de Franco Montoro patrocinem, con uns penduricalhos do partido de João Amazonas, um acordo que põe em ação um urbanismo digno de um Emílio Garrastazu Médici, comandado por um mini-Mussolini das empreiteiras.

Como a diferença de dinheiro é gigantesca em relação a quaisquer forças de resistência que se possam armar -- estas têm sido articuladas muito mais pelos movimentos de ocupação, como o de Dandara, que por estruturas partidárias  --, o quase certo é que Lacerda se reeleja em 2012. A cidade vai sucumbindo ao paradigma do asfalto e acelerando seu processo de entristecimento empreiteiro.  Provavelmente algum tempo transcorrerá até que a cidade termine de processar a grave, talvez imperdoável ironia de que sejam as forças da assim-chamada-esquerda (socialistas, petistas, comunistas e social-democratas) as fiadoras dessa privatização militarizada do espaço público.