Zika, aborto e feminismo: Porque precisamos falar de aborto

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A janela do Zika mostra um Estado que faliu completamente diante da necessidade das mulheres mais pobres, das mulheres nordestinas, negras, afetadas. Um Estado que abandona as mulheres quando elas mais precisam. Revela um Estado absolutamente despreparado não apenas para parar com a epidemia, mas incapaz de se organizar para propor informação. O Estado caça o mosquito e abandona as mulheres e crianças

Por Adriana Dias*

Há cerca de quatro meses, encontrei o querido Antônio José, titular da Secretaria da Pessoa com Deficiência do então Ministério de Direitos Humanos, numa reunião no Amapá. Na ocasião, ele perguntou-me a respeito do aborto em caso da síndrome congênita do zika. E falei diretamente que era favorável à descriminalização da interrupção da gravidez nesse caso. Dei argumentos, ele concordou e me disse "pena que vamos ter que discutir aborto", um direito das mulheres para ele, pela janela do Zika.

Eu não respondi esse pequeno comentário. Hoje, respondo neste artigo. Precisamos falar de aborto e Zika? Sim, e muito. Se a janela é o Zika, olhemos por ela: a epidemia do vírus zika cresceu de maneira feroz. Em agosto de 2016, já estava presente em 68 países e territórios. O zika foi descoberto em 1940, foi considerada doença leve. Novas pesquisas informam, no entanto, numerosos casos de malformações e de complicações neurológicas fetais, associadas à infecção de mulheres grávidas pelo vírus. A epidemia é declarada Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em fevereiro de 2016. O epicentro é o Nordeste brasileiro. As mulheres afetadas: nordestinas, negras, pobres. Por esse mesmo motivo, provavelmente, absolutamente abandonadas pelo estado brasileiro.

Os Defensores Públicos entraram com uma ação contra o Estado, solicitando medidas urgentes de atenção às crianças e famílias afetadas. Repelente para as mulheres que desejam engravidar e permanecer grávidas nas regiões epidêmicas, atendimento para as crianças afetadas, auxílio para as famílias. Na ação, também se solicita a viabilização da interrupção da gravidez, SE A MULHER ASSIM DESEJAR.

A Janela do Zika

Janela, janua em latim, pequena porta, cujo sentido é passagem. Dar passagem, intermediar.

Compreendendo a síndrome congênita do zika - Nos termos do parecer da Dra. Laura Rodrigues, que instrui a ação, as descrições da síndrome são muito graves: morte fetal, anormalidades do cérebro com ou sem microcefalia, déficit visual e auditivo. As lesões neurológicas, investigadas através de imagem radiológica do cérebro, indicam que as lesões são predominantemente no córtex (responsável por memória, atenção, percepção, pensamento, linguagem, consciência, alerta); no recém-nascido, se manifestam com irritabilidade e choro muito frequente, falta de contato visual, hipertonia e espasmos infantis.

Para além da picada do mosquito vetor (Aedes aegypti) e da transmissão vertical (da mulher para o feto no útero), a investigação científica também já identificou outras formas de transmissão do vírus zika, a exemplo da via sexual. Averigua-se, também, as possibilidades de transmissão por transfusão de sangue (já reportadas no Brasil, mas ainda não confirmadas), e por aleitamento materno, ainda sem casos registrados.

Os fatores mais marcantes são, mais uma vez, neurológicos, e incluem uma frequência crescente de epilepsia e de dificuldades em alimentação que podem requerer alimentação por sonda, atraso – que pode ser muito severo – no desenvolvimento motor e cognitivo; diagnóstico tardio de deficiência visual e auditiva. Já foram descritos achados de recém-nascidos aparentemente sem alterações, porém com calcificações cerebrais. O que a janela do zika desvenda? A que passagem ela nos leva?

  1. A janela do zika mostra um Estado que faliu completamente diante da necessidade das mulheres mais pobres, das mulheres nordestinas negras afetadas. Um Estado que abandona as mulheres quando elas mais precisam. Revela um Estado absolutamente despreparado não apenas para parar com a epidemia, mas incapaz de se organizar para propor informação. O Estado caça o mosquito e abandona as mulheres e crianças.
  2. A janela do zika revela o desespero das mulheres abandonadas. Uma parte delas desejava interromper a gravidez. O machismo do Estado não permite. Grita eugenia. Eugenia é quando o Estado decide pelo corpo das mulheres. Quando elas decidem, não há eugenia. Há feminismo, há liberdade. Há cuidado para as mulheres que desejam ter seus filhos, e interrupção a gravidez, com cuidados adequados para as que não desejam.
  3. A janela do zika denuncia o capacitismo do Estado. Discrimina pessoas com deficiência, mulheres e negros, trata seus corpos como menos humanos, enquanto a elite decide quem pode sobreviver e de que maneira. O machismo e o racismo são formas de capacitismo, porque os corpos das mulheres e dos negros também foram construídos histórico e socialmente como menores e inferiores, subjugados e oprimidos. Mulheres com deficiência estão apoiando a defesa da interrupção da gravidez em caso de zika. Porque defendem a autonomia dos corpos femininos, assim como dos corpos das pessoas com deficiência.
  4. A janela do zika desnuda o machismo do Brasil. As mulheres afetadas, quase todas abandonadas pelos maridos, vivem um drama social imenso. Em uma pesquisa de 2012, o Instituto Baresi descobriu que 78% das mães de crianças com doenças raras graves são abandonadas pelos maridos, passando a viver um drama duplo: passam a ser a única cuidadora da criança e a responsável pela manutenção financeira do lar, uma vez que os homens em sua grande maioria precisam ser judicializados para contribuir. As ações alimentícias não cobrem as necessidades das crianças, e as mães vivem em estado de permanente endividamento. O mesmo acontece com as mães na síndrome congênita do zika. A janela do zika desnuda o quanto as mulheres mais pobres são as mais agredidas, de todas as formas, no drama social.
  5. Finalmente, a janela do zika demonstra que precisamos ouvir mais as mulheres que julgá-las. Não gritem eugenia. Ouçam as mulheres!
*Adriana Dias é Bacharel em Ciências Sociais em Antropologia, Mestre e Doutoranda em Antropologia Social – tudo pela UNICAMP. É também coordenadora do Comitê “Deficiência e Acessibilidade” da Associação Brasileira de Antropologia e coordenadora de pesquisa tanto no Instituto Baresi (que cria políticas públicas para pessoas com doenças raras) quanto na ONG ESSAS MULHERES (voltada à luta pelos direitos sexuais e reprodutivos e ao combate da violência que afeta mulheres com deficiência). É Membro da American Anthropological Association, e foi membro da Associação Brasileira de Cibercultura e da Latin American Jewish Studies Association