Um balanço de 2019: o olhar dos movimentos populares

Raimundo Bonfim “Que neste novo ano, dia a dia estejamos atuantes nas favelas, bairros e comunidades, dialogando no seio das classes populares sobre as possibilidades de, pela luta, transformar a realidade que vivemos”

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O ano está chegando ao fim e por isso pretendo fazer aqui um breve balanço desse período, com o olhar de alguém que atua nos movimentos populares urbanos. É preciso enfatizar, antes de mais nada, que resistimos. E, apesar de todas as adversidades, de tantos retrocessos que serão expostos é possível encontrar, no trabalho cotidiano das classes populares, os elementos necessários para revertermos o quadro atual de desmonte e retomarmos o caminho das conquistas. O governo Bolsonaro encerra 2019 entregando às classes dominantes aquilo que prometera durante a campanha: subserviência ao imperialismo estadunidense no plano internacional, desmonte dos direitos e das políticas públicas no plano nacional e escalada da violência de Estado e das milícias contra lideranças populares, nossa juventude negra, pobre e periférica, as mulheres e a população LGBTI+. Não é sócio Fórum? Quer ganhar 3 livros? Então clica aqui. Uma das características do bolsonarismo, que inclusive nos ajuda a definir seu governo como neofascista, é o permanente tensionamento contra o Estado Democrático de Direito e uma busca constante pela ruptura institucional nas mais variadas esferas administrativas. Na política externa, isso se traduziu pelo constante ataque aos sistemas internacionais de proteção de direitos e ruptura do país, com pactos que visam sua efetivação. Um exemplo pode ser dado pelo anúncio, já em janeiro, da saída do Pacto Global pela Migração da ONU, um acordo intergovernamental que visa, dentre outras metas, promover a “cooperação para rastrear os migrantes perdidos e salvar vidas, garantir o acesso aos serviços básicos para os migrantes e estabelecer regras para a inclusão plena dos migrantes e a coesão social”. Tal postura - que afeta diretamente a vida de brasileiros e brasileiras em situação de vulnerabilidade em diferentes países do mundo, e de imigrantes que aqui vivem em busca de condições dignas de vida - foi apenas mais uma demonstração do completo alinhamento de Bolsonaro aos Estados Unidos de Donald Trump e alguns outros países governados pela extrema direita, como o Estado genocida de Israel. Bolsonaro embarcou nas tentativas de golpe contra o governo legítimo de Nicolás Maduro, elogiou o ditador Augusto Pinochet em visita ao Chile e o ditador Alfredo Stroessner em visita ao Paraguai, e deu mais uma demonstração de seu caráter misógino ao atacar a aparência de Brigitte Macron, esposa do presidente francês Emmanuel Macron. No plano econômico, a política internacional foi de “toma lá”, sem o “dá cá”. Na visita aos EUA, Bolsonaro anunciou queda nas tarifas de importação de produtos como o trigo, uma abertura de mercado sem qualquer contrapartida e a entrega da base estratégica de lançamentos de foguete de Alcântara, no Maranhão, mediante um pagamento de aluguel de meros US$ 10 bilhões anuais, mas com várias restrições ao Brasil, tais como a proibição de lançarmos nossos próprios satélites a partir da base e a de usar o dinheiro do aluguel para compra, pesquisa ou produção de foguetes de longo alcance. Também abrimos mão do tratamento especial recebido na Organização Mundial do Comércio, em nome de um suposto apoio dos EUA à entrada do Brasil na OCDE, algo que não ocorreu. Trump ainda anunciou aumento das tarifas de alumínio e aço produzidos no Brasil, o que prejudica fortemente nossa indústria. Ainda passamos vergonha em grandes eventos internacionais, como o discurso de apenas seis minutos em Davos, no Fórum Econômico Mundial, e a abordagem fascista na abertura da Assembleia Geral da ONU, com afirmações absurdas como a de que o Brasil “ressurge depois de estar à beira do socialismo”. A política de Bolsonaro foi de desmonte de direitos, estagnação econômica, concentração de renda e destruição ambiental. Talvez o crime da Vale em Brumadinho (MG) possa sintetizar tal política. O rompimento da barragem matou mais de 300 pessoas e destruiu o ecossistema da região, com mais de 12 milhões de metros cúbicos de rejeitos que atingiram a Mata Atlântica e a bacia do Rio São Francisco. Apesar disso, os sócios da Vale não foram devidamente responsabilizados e sequer as indenizações para as famílias das vítimas foram pagas. Em decorrência da omissão das autoridades na devida apuração e responsabilização criminal, a Vale registrou, no terceiro trimestre de 2019, lucro líquido de R$ 6,5 bilhões. Por isso, digo que esse crime pode sintetizar a política bolsonarista: às transnacionais e ao capital financeiro internacional ficam os bônus. Às famílias brasileiras, ao nosso meio ambiente e recursos naturais recaem os ônus. Essa é a política respaldada pelo ministro da Justiça, Sérgio Moro, que se omite na promoção da justiça diante dos poderosos e quer impor a força das armas sobre a população mais vulnerável, com seu pacote anticrime, que libera a morte por policiais e promove crimes como o de Paraisópolis, que matou nove jovens negros e pobres. Também foi bastante elucidativa a atitude imediata de Moro diante das revelações do Intercept Brasil, que evidenciaram sua atuação política contra o presidente Lula e a esquerda brasileira: o juiz foi imediatamente aos EUA buscar orientação em uma agenda secreta no país. Seu jogo duplo, de omissão diante de crimes do grande capital – crime da Vale, derramamento de óleo no litoral do Nordeste, queimadas na Amazônia, garimpo e corte ilegal de madeiras, assassinato de lideranças indígenas e sem terra – e de coronelismo contra a esquerda dão mostras de qual é seu papel na política brasileira: conduzir a reorganização do Estado para privilegiar os interesses transnacionais e anular a resistência popular. Uma resistência que se fará cada vez mais presente diante dos impactos da austeridade financeira e liberalismo econômico. A política bolsonarista de arrocho fiscal, privatizações, liberalização comercial e desmonte de direitos nunca trouxe resultados positivos no Brasil ou outros países no mundo. Pelo contrário, seguimos estagnados, com mais de 12 milhões de pessoas desempregadas, aumento exuberante da precarização do trabalho e desindustrialização. A agenda econômica esteve boa parte do ano atrelada ao desmonte da previdência, com duas mentiras conjugadas: a do déficit da Previdência e da retomada de investimento privado pós-reforma. Perdemos nosso direito à aposentadoria, sem que as falsas promessas se cumprissem. E, para piorar, o governo anunciou nova precarização trabalhista, com a isenção de contribuição patronal ao INSS, e manteve salário integral na aposentadoria dos militares. Ou seja, a mentira do déficit serviu para retirar direitos dos trabalhadores, mas foi esquecida quando se tratava dos privilégios das classes dominantes. Também vimos, ao longo do ano, crescer o poder militar, evidenciado não apenas pela reforma da Previdência, que para os militares se tratou de uma melhora no plano de carreira. Os militares ocupam boa parte dos postos de comando do Poder Executivo, o que demonstra o caráter antidemocrático do governo, pois militar responde à sua hierarquia, não aos interesses da população. Conjugado a isso se deu o aumento da violência das polícias e da criminalização dos movimentos sociais e das lideranças populares. Cresceu igualmente o poder das milícias, o que traz nova evidência: a relação intrínseca entre militarismo e para-militarismo. É o poder armado organizado no interior do Estado e na sociedade, e em permanente relação. Talvez a vizinhança do condomínio Vivendas da Barra, onde a família Bolsonaro vive no Rio de Janeiro, seja a síntese de tal relação: lá militares e milicianos convivem e, aparentemente, os matadores até se confundem, na portaria, qual casa visitar antes de ir à cena do crime... Foi, portanto, em 2019 que o assassinato de Marielle chegou no colo da presidência da República, mas o “coronel” Moro preferiu intimidar um porteiro, ao invés de promover uma investigação independente sobre esse crime que chocou o Brasil e o mundo. Podemos seguir nosso balanço tratando de cada desmonte setorial: o desfinanciamento do SUS, que impactará a saúde fortemente já a partir de janeiro; os constantes ataques à educação pública e à produção científica no país; a paralisação do Minha Casa Minha Vida Entidades; o fim dos conselhos e conferências e das políticas de participação; dentre tantos outros retrocessos. Mas prefiro finalizar este artigo com um olhar para a resistência popular. O tempo da política nem sempre é condizente com as necessidades históricas mais prementes. Neste 2019 tivemos dificuldades de, efetivamente, resistir a tantos retrocessos. Isso não significa completa omissão, como alguns afirmam. A esquerda promoveu greve contra a reforma da Previdência no primeiro semestre, grandes atos em defesa da educação pública e o maior Grito dos Excluídos dos últimos anos. Também pudemos nos solidarizar com grandes levantes populares no Chile, Equador, Bolívia e Colômbia, além de comemorar a vitória eleitoral da esquerda na Argentina e a resistência do bolivarianismo na Venezuela. Encerramos o ano com a soltura do presidente Lula e avanço na luta pela anulação do processo injusto que o levou à prisão. A luta está apenas começando e é diante dos desafios que se colocam que devemos nos debruçar. O bolsonarismo, como afirmado acima, promove uma cotidiana ruptura institucional, na destruição do Estado Democrático de Direito e conformação de uma sociedade e um Estado neofascistas. Ainda que exista alguma crítica nos grandes meios de comunicação ao seu autoritarismo, essa mesma mídia aplaude as medidas neoliberais e a retirada de direitos que tanto prejudicam a vida do povo. O que a história nos mostra é que o avanço fascista necessita de apoio social, e é no contraponto cotidiano a isso que precisamos nos engajar. Devemos elaborar uma estratégia que enfrente o avanço político-social do fascismo, o que passa necessariamente pela organização popular. Em 2020, teremos eleições municipais, e nelas devemos nos envolver, porém sem nos deixar levar pelo imediatismo. Será momento de debater os problemas das cidades e as consequências das políticas bolsonaristas no plano local. Será momento de reafirmar a democracia como caminho para solução dos problemas do país, mas uma democracia que combine eleição com mobilização popular. Contra o Estado fascista devemos levantar a bandeira de uma democracia popular. Que neste novo ano, dia a dia estejamos atuantes nas favelas, bairros e comunidades, dialogando no seio das classes populares sobre as possibilidades de, pela luta, transformar a realidade que vivemos. Com uma permanente construção de força popular, articulada em torno de um projeto de país soberano e democrático, poderemos retomar o caminho da efetivação de direitos e acumular forças com vistas à retomada do crescimento econômico, geração de emprego, distribuição da riqueza e inclusão social.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.