Escolas para formar “indivíduos meio idiotas”

Raphael Fagundes: “Esse discurso de que se quer implantar um novo modelo no Brasil é puro engodo, principalmente em termos educacionais, pois esconde o interesse de investir em um ensino puramente mecânico”

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Para o projeto de país que o governo vem se dedicando, Vélez é muito mais bem preparado que o novo ministro da Educação. Será que Abraham Weintraub irá conseguir imbecilizar a mão de obra do país? O governo já deixou claro que não tem interesse em investir em cultura e ciência. O Brasil não almeja, portanto, construir uma mão de obra qualificada, principalmente em termos tecnológicos e científicos. A meta é limitar os trabalhadores brasileiros a meros trabalhadores parciais simples, dedicados à linha de montagem e atrofiando sua criatividade, deixando às mentes estrangeiras o encargo erudito do processo produtivo, como a criação de remédios, softwares e tecnologia robótica. Desde as origens do capitalismo buscou-se empregar “indivíduos meio idiotas em certas operações simples que constituíam segredos de fabricação”(1). Marx lembra as palavras de Adam Smith que descreviam a imbecilidade do trabalhador: “Um homem que despende toda a sua vida na execução de algumas operações simples (...) não tem oportunidade de exercitar sua inteligência (...) Geralmente, ele se torna tão estúpido e ignorante quanto se pode tornar uma criatura humana”. “Assim, sua habilidade em seu ofício particular parece adquirida com o sacrifício de suas virtudes intelectuais...”. Adam Smith, pelo menos, defendia uma instrução mínima popular bancada pelo Estado, outros já se perguntavam se o governo deveria realmente empregar parte de sua receita para isso. Ricardo Vélez Rodríguez faz parte de um grupo de intelectuais que espelham na América do Norte, entendendo-a como um modelo de progresso. Esse ponto de vista foi explorado pelos estudos de Richard Morse em seu Espelho de Próspero. É a nortemania descrita pelo escritor uruguaio José Enrique Rodó em um tipo de análise dialética denominada arielismo, nome inspirado em um personagem de Shakespeare de A Tempestade. De acordo com essa visão, o mundo ibérico do Seiscentos assegura a manutenção das tradições medievais por meio do Barroco, resistindo às transformações do norte europeu que, por sua vez, desembocariam no individualismo e no utilitarismo do mundo moderno. Os resquícios deste mundo tradicional irão permanecer na América Latina até mesmo após as independências onde, segundo Richard Morse, as elites perderam suas bases morais legitimadoras e tiveram que reconstruir por meio de qualquer aparência ideológica a cristalização de seu poder (2). De acordo com Morse, a Península Ibérica, no século XVII, tentou resistir aos ventos da mudança que anunciavam um mundo voltado para o individualismo, fruto de elementos contidos nas Reformas Religiosas e na Revolução Científica. Estas duas revoluções, que seriam as bases para a formação do mundo moderno, não avançaram sobre as fronteiras da Ibéria devido à singular acrobacia política promovida pelas elites que não queriam perder o poder, escolhendo persistir com o empirismo medieval, além da prática que visava à manutenção do Império sob a ótica da incorporação dos diversos povos submetidos aos seus domínios. Morse promove uma análise dialética entre a Anglo-américa e a Ibero-américa guiada pela seguinte questão: por que as elites latino-americanas não foram capazes de construir uma ideologia hegemônica após as independências? Acredita que as duas partes do continente foram colonizadas por grupos oriundos de uma mesma matriz cultural, mas que, no entanto, em um dado momento crítico da história, cada região optou por aspectos distintos a partir dos elementos que esta matriz cultural podia fornecer. O mundo anglo-saxão adotou uma perspectiva individualista, uma ética cristã provinda do protestantismo, enquanto os ibéricos filiaram-se a uma ideologia voltada à vontade geral, ao bem comum, enleada à Igreja Católica e ao tomismo medieval. O primeiro mundo inspirou seu ideário político nas obras de Maquiavel e de Thomas Hobbes e o segundo, nas propostas de teólogos, principalmente vinculados a Companhia de Jesus. Pode ser exagero de Morse a afirmação de que o mundo ibérico permanecia estagnado com sua produção intelectual ainda baseada em cânones medievais. Alguns jansenistas franceses diziam que, “ao longo dos anos 1760, Portugal havia passado da categoria de reino do obscurantismo àquela de reino onde as luzes faziam notável progresso” (3). Até o método cartesiano e algo similar ao sistema de Leibniz, além da perspectiva de Newton, foram acolhidos pelos padres da Congregação do Oratório (4). Mas é um fato que as reformas pombalinas foram controladas pelo Estado e a maior parte dos atuantes eram clérigos (5). No entanto, dizer que a Península Ibérica se manteve fechada é algo radical. A questão é que “a Coroa sempre procurou agir com muita moderação, a fim de evitar posições mais radicais que lhe pudessem trazer maiores complicações” (6). Mas Vélez não reconhece essa visão e acredita que se espelhar no Norte é o caminho. Critica um suposto poder excessivo do Executivo que nos prende a um “autoritarismo tecnocrático”. Esse ponto, segundo ele, é o “que afasta investidores”. Critica o PT chamando-o de “viúvas da Praça Vermelha” e vangloria o general Golbery do Couto e Silva, que acredita ter combatido o “modelo modernizador getuliano-pombalino” o qual entende que a ciência aplicada deve ser desenvolvida para resolver os problemas do Estado (7). O modelo que Vélez e a suposta elite intelectual que o apoia pretende impor espelha-se na América do Norte e entende que a ciência deve ser fruto de investimentos privados, como foi nas academias do norte da Europa, o que desembocou nas revoluções científicas de Newton e outros cientistas. Essa visão seria interessante se ela não cometesse erros básicos. Primeiro não entende o lugar do Brasil no sistema-mundo. O modelo econômico que o governo Bolsonaro vem defendendo é de submissão, um modelo colonial, bem diferente do que se faz no norte imperialista. Portanto, mais do mesmo. Segundo que as invenções e descobertas científicas não foram pautadas no utilitarismo, a maior parte delas não tinha nenhuma utilidade no momento em que foram descobertas (8). Terceiro que a ideia de que o investimento estatal atravanca o progresso científico e tecnológico não se confirma quando sabemos que a URSS levou o homem ao espaço antes dos liberais do Ocidente e que Cuba, em termos medicinais, demonstrou grandes avanços. Deste modo, esse discurso de que se quer implantar um novo modelo no Brasil é puro engodo, principalmente em termos educacionais, pois esconde o interesse de investir em um ensino puramente mecânico para que, como crianças indianas e vietnamitas em contêineres, produzamos os produtos baratos enriquecendo os grandes capitalistas internacionais. (1)MARX, K. O Capital. Livro 1 vol 1. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. p. 417. (2)MORSE, Richard M. O Espelho do Próspero: cultura e ideias nas Américas. Trad: Paulo Neves. São Paulo: Cia das Letras, 1988. p. 55. (3)SOUZA, Evergton Sales. Igreja e Estado no período pombalino. FALCON, Francisco e RODRIGUES, Claudia.  A época pombalina no mundo luso-brasileiro (orgs.). Rio de Janeiro: FGV, 2015. p. 283 (4)VILLALTA, Luiz Carlos; MORAIS, Christianni Cardoso de; MARTINS, João Paulo. As reformas pombalinas e a instrução (1759-1777). FALCON, Francisco e RODRIGUES, Claudia.  A “época pombalina” no mundo luso-brasileiro (orgs.). Rio de Janeiro: FGV, 2015. p. 456. (5)SILVA, Ana Rosa Cloclet da. O marquês de Pombal e a formação do homem-público no Portugal setecentista. In: FALCON, Francisco e RODRIGUES, Claudia.  A época pombalina no mundo luso-brasileiro (orgs.). Rio de Janeiro: FGV, 2015, p. 437. (6)SOUZA, Evergton Sales. Igreja e Estado no período pombalino. FALCON, Francisco e RODRIGUES, Claudia.  A época pombalina no mundo luso-brasileiro (orgs.). Rio de Janeiro: FGV, 2015. p. 302. (7)RODRÍGUEZ, Ricardo Vélez. Tradição e modernidade no mundo ibero-americano: o caso brasileiro. In: PRADO, Maria Emília. (org). Tradição e Modernidade no Mundo Ibero-Americano. Rio de Janeiro: UERJ, 2004. Pp. 74-75. (8)https://diplomatique.org.br/governo-visa-formar-ignorantes-para-ampliar-sua-base-de-apoio/
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.