O Fogo na Floresta de Marcelo Ferroni, por Manoel Herzog

Heloísa, a protagonista do romance, foi comparada pela crítica a Emma Bovary, heroína do auge do romance realista, quando a mulher se vingava do carcomido sistema capitalista traindo o marido burguês, ou, quando menos, desprezando-o em prestígio de aventuras vagas

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Por um destes acasos que relutamos em crer acaso, vida me levou semana passada ao Centro-Oeste brasileiro, com breve incursão na Bolívia. Tive oportunidade de ver de perto um continente ardendo, o que inclusive me atrasou o voo de volta, avião não baixava nem subia no meio do fumacê. Obra da seca, em parte, que as chuvas relutam em começar no Pantanal, mas obra primacialmente do bando de criminosos idiotas que foi levado ao poder por um bando de idiotas criminosos, com ou sem dolo estes últimos – aqueles são todos dolosos. É a língua de fogo do pentecostes, é o fogo do apocalipse em que vai arder a erva daninha arrancada da boa colheita, mas a impressão que dá é que vamos arder todos juntos numa América Latina saqueada e ensandecida. O fogo a tudo renova ou, em bom latim, Igne Natura Renovatur Ictus (INRI, outro significado da sigla esotérica). Daquele fogo atiçado numa floresta indefesa, calcinando vidas, eu não vejo possibilidade de renovação, senão de deserto. Essa amargura toda me trouxe à memória um dos grandes romances do ano passado, O Fogo na floresta, de Marcelo Ferroni. Quem parta do título, todavia, não vai encontrar em suas páginas referência alguma às queimadas dos ecossistemas latinoamericanos pelo latifúndio agronegocial. Fogo na floresta (porque talvez quando a floresta queime seja o fim dos tempos, o auge da crise) é história urbana de uma mulher de classe média cujo emprego é o de editora, submetida ao mundo corporativo e com todos os sonhos e preconceitos da camada a que pertence, essa mesma classe média inculta e ingênua. Lembra-me um aforismo do poeta Antonio Porchia, un poco de ingenuidad nunca se aparta de mí. Y es ella la que me protege. Heloísa, a protagonista, foi comparada pela crítica a Emma Bovary, heroína do auge do romance realista, quando a mulher se vingava do carcomido sistema capitalista traindo o marido burguês, ou, quando menos, desprezando-o em prestígio de aventuras vagas. Ao auge do romance realista, fruto da revolução industrial inglesa, viria a História dar a resposta do marxismo e a Literatura a do existencialismo, o indivíduo sartreano levando a solidão às últimas consequências, malogradas as utopias coletivas. Ocorre que, como bem verá a protagonista na trama do livro, a postura individual frente à ilusão da mais-valia leva inevitavelmente o ser (aqui metáfora de um coletivo, a classe média) à bancarrota moral e material, por absoluta falta de estofo, por estar amadora num jogo para profissionais. O resultado não poderia ser outro que o da classe média em cheque-mate, frustrado o sonho que com seus preconceitos e ignorâncias levou ao poder isso que estamos vendo. E ainda há, mesmo nessa classe média derrotada, os que fechem os olhos e insistam no erro. Paralela a toda a derrisão do mundo de Heloísa, afundada em dívidas e consumismo inútil, corre a paralela trama de uma expedição naval ao polo Norte, que terminou, a História o confirma, com o aprisionamento do navio entre as geleiras e a morte de toda a tripulação. Melhor metáfora não haveria para a recente História brasileira, ainda que, em vez de gelo, como no livro, nossa tragédia se consolide no fogo. As chamas chegaram agora, e consomem a floresta, como se o caráter profético da Literatura mais uma vez se fizesse valer. O livro foi escrito no final dos governos de esquerda (2014), quando ainda era apenas previsível, e não esta horrível realidade, chegarmos aonde chegamos, quando ainda estávamos agarrados à tábua de alguma esperança, mas veio o Golpe, veio Moro, veio a CIA, veio tudo e nos largou num oceano de fogo onde não podemos nadar. Serviço: O fogo na floresta, romance, Marcelo Ferroni, Companhia das Letras, 2018, R$.47,90