A poesia que respira

Manoel Herzog “Ao falar dos bichos, Bresciani reporta-se ao mais humano de nós, não como Orwell em sua Revolução, mas como Derrida em O animal que logo sou, fabuloso ensaio em que o filósofo tangencia as grandezas ‘animalidade’ e ‘ser vivente’

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Durante as atividades do XI Festival Internacional de Poesía en el Centro, realizado em Buenos Aires agora em agosto, presenciei uma cena bizarra: o poeta uruguaio Rafael Courtoisie começou a recitar versos mais ou menos do seguinte teor, cito de memória: Es facil ser un vegano em Buenos Aires... Claro que o maestro, com ironia peculiar, se referia aos infinitos churrascos da cidade portenha, e o poema terminava contradizendo o título, porque deve ser dificílimo permanecer vegano naquela Sodoma carnívora. Um homem (por certo um vegano em tais dificuldades) desde a plateia indignou-se e saiu a deblaterar contra o poeta, a quem acusou de farsante, pedante e outras coisas pouco elegantes.

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Rafael, um gentleman, agradeceu a intervenção e o insurgente, frustrado com a falta de reposta que ensejasse a discussão, se retirou em protesto. O fato me trouxe à reflexão o quanto se faz necessário o processo civilizatório. A Argentina vive um momento feliz, espero que com fundamento, está banindo o neoliberalismo e respira esperança. Tudo isto me confrontou com a leitura do último poemário do amigo Alberto Bresciani, Fundamentos de Ventilação e Apneia (Patuá, 2019). Big Bang, buraco negro, do caos à ordem, o espírito de Deus se movendo sobre as águas do Gênesis, a respiração de Ab-ram, dia e noite de Brahman, o Abraão pai das teologias. No movimento de inspirar/expirar, nessa yoga ancestral pela qual o Universo foi criado, repousa o ritmo, fundamento maior da poesia, eterno movimento binário de inflar/desinflar, encher e esvaziar-se. Toda forma de vida traz essa pulsão, o coração bate do momento da concepção até o expirar, e expirar é sinônimo de morrer, tal qual ter orgasmo, petite morte. Respiram os mamíferos, as baleias sopram seu jato espermático contra Ahab assassino, também a respiração dos insetos, nos quais o ar entra e sai por conta própria, a respiração branquial dos peixes, que sorvem água, como nós fazíamos enquanto éramos fetos, e só fomos trazidos ao ar mediante um tapa na bunda, ou seja, com dor. Essas imagens todas me saltam à mente durante a leitura do livro do Bresci. Seguindo a linha dos anteriores Incompleto Movimento e Sem passagem para Barcelona, este poeta da elegância (pessoal e literária) inova dentro da própria voz que o vem consagrando no cenário nacional com um livro temático, que evoca a vida animal, e aqui se entenda animal a partir da raiz “anima”, ou seja, os seres com alma. Mamíferos, aves, répteis de sangue gelado, insetos, microrganismos, tudo que tem alma respira, porque o Universo vibra entre as pulsões de vida e morte. Ao falar dos bichos, Bresciani reporta-se ao mais humano de nós, não como Orwell em sua Revolução, mas como Derrida em O animal que logo sou, fabuloso ensaio em que o filósofo tangencia as grandezas “animalidade” e “ser vivente”. Das pessoas mais generosas no circuito poético nacional, desde a Brasília que adotou enquanto casa e cujo forte movimento poético integra como uma das vozes principais, Bresciani, escrevendo ou atuando como militante cultural, é uma voz necessária nestes tempos. Livro imperdível. Serviço: Fundamentos de Ventilação e Apneia, Editora Patuá, 2019, preço R$ 38,00, pelo site www.editorapatua.com.br
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.