Entrevista – Prof. Roberto da Silva, da USP, fala de Educação no cárcere

Foto: Arquivo pessoal.
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O professor Roberto da Silva* é um ícone na Universidade de São Paulo, pois trata uma temática pouquíssima explorada: a efetivação de uma educação por trás dos muros e das grades. Os estudos e pesquisas do especialista vão no sentido de compreender como esta educação pode se dar, bem como a criação de uma pedagogia para ambientes de reclusão. Seu trabalho já é uma referência internacional, por ser pioneiro nesse campo no Brasil e um dos primeiros no mundo a estudar e a pensar o ensino no cárcere.

O senhor é professor numa das mais respeitadas universidades de Educação da América Latina e tem um currículo excepcional. Pode nos contar um pouco sobre as pesquisas que está desenvolvendo na USP?

RS - Eu trouxe para a universidade temas que não são considerados nobres, sobre os quais a academia historicamente nunca quis se ocupar, como as vivências de rua, a questão dos abrigos, da adoção, do ato infracional cometido por adolescentes, das prisões e da Educação que se faz em outros espaços além da escola. Esses são os temas que abordo do ponto de vista de uma Pedagogia Social, área de conhecimento que eu fomento na Universidade de São Paulo. Há três grupos de pesquisas sob minha coordenação que se ocupam desses temas, todos com dissertações e teses já defendidas. Tenho algumas prioridades em pesquisa, como a concepção de um projeto político-pedagógico para a Educação em prisões, a construção de um conjunto de indicadores para avaliação da função social da escola pública no Brasil e a regulamentação da Pedagogia Social como parte integrante das Ciências da Educação. Essas pesquisas requerem investigações adicionais, que são desenvolvidas por alunos de graduação e de pós-graduação que aprenderam que Educação se faz em uma multiplicidade de espaços e de tempos, não apenas na escola ou na sala de aula.

Como um dos primeiros professores negros da USP, fale um pouco sobre sua trajetória. Já se sentiu discriminado no ambiente acadêmico?

RS - Eu sou originário de uma não-família, que o Estado destruiu quando confiscou 4 filhos de uma mulher negra e pobre, condenando-os a viver até os 18 anos em abrigos, na época do Regime Militar. Minha mãe foi confinada num hospital psiquiátrico onde ficou até sua morte. Após completar a maioridade, quem viveu em abrigos precisa se virar pelos próprios meios e isso leva à delinquência e à prisão, onde passei cerca de 10 anos. Quando fui encarcerado, estava na 5ª série do antigo primeiro grau e saí com a mesma escolaridade de lá, porque dentro da prisão não havia escola e a Educação não era uma preocupação. A preocupação era a sobrevivência. Aprendi a estudar como autodidata e a pesquisar devorando arquivos e revirando documentos, sempre em busca de histórias de vidas e de manifestações do Estado, de seus agentes e da Justiça sobre as pessoas. Já em liberdade, concluí os estudos por meio de supletivos e, em seguida, fiz a graduação em Pedagogia, Mestrado e Doutorado em Educação. Depois, como professor na USP, fiz também Livre Docência em Pedagogia Social.

Quando se tem uma trajetória assim é difícil ser vitimado pela discriminação, pois acumulei mais estudos, títulos e reconhecimento do que meus pares, apesar de ter um ponto de partida mais desfavorável do que a maioria deles. 

Como encara o atual cenário da Educação no Brasil?

RS - Quando analisamos de onde partimos, onde chegamos e aonde precisamos chegar é inegável que colecionamos avanços. Na Constituição Federal temos uma concepção de Educação que se aproxima do ideal, mas uma Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) que reduz esta concepção a uma mera escolarização. A questão me parece ser o quanto o Estado e a sociedade aceitam prover de educação para os seus cidadãos. Mesmo que tenhamos gratuidade da creche ao pós-doutorado, não quer dizer que os níveis mais elevados da educação estejam ao alcance de todos. As escolas e universidades de excelência, por exemplo, são apropriadas pelas classes mais privilegiadas, ainda que sejam custeadas pelo conjunto da população. O currículo escolar que, por sua vez, subsidia e em função do qual se faz a formação de professores, é uma coletânea de pseudocientificidades que prioriza concepções, teorias e doutrinas pretensamente hegemônicas no mundo, porém, ignorando as necessidades do povo brasileiro. Isso também acontece em tantos outros países submetidos aos horrores da colonização, da escravidão e da expropriação de suas riquezas. Ainda predomina na educação escolar a “educação para a submissão”, para retroalimentação do modelo capitalista, para a alienação do ser humano em relação às suas potencialidades e capacidades.

A Educação ainda é um campo de disputas, mas, quanto aos controles político-ideológicos do currículo, é de disputa econômica em relação à escola e de controle político sobre o magistério. Sequer iniciamos ainda a disputa sobre o controle social do currículo e da escola, por isso minha insistência no estudo das funções sociais da escola pública brasileira.

O senhor é o primeiro cientista da Educação dedicado à temática de educação em presídios no Brasil. Como foi lidar com esse pioneirismo? O que pensa sobre como funciona a educação das pessoas encarceradas?

RS - Desde a Declaração Universal dos Direitos Humanos, em 1948, se reconhece a humanidade de todas as pessoas. O reconhecimento do direito à Educação de todos os seres humanos é mais recente – a Declaração de Jomtien, de 1990 – e o reconhecimento do mesmo direito aos presos ocorre somente em 2010 no Brasil. O condenado foi despido de todas as suas máscaras, destituído de toda sua dignidade, cassado em todos os seus movimentos e submetido a rígidos controles disciplinares e sem os cuidados básicos com alimentação, higiene e saúde. Do ponto de vista das potencialidades do corpo humano e da vocação de ser mais que todo ser humano tem, o condenado é a pessoa que mais sofre danos e prejuízos no funcionamento de seu aparato físico, psíquico e neurológico. Sobretudo os que estão em Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), pois ficam até 23h trancados e tem apenas uma hora por dia para se movimentar, ainda assim com restrições.

Considere que, no Brasil, o tempo médio em que se fica na prisão é de 8 anos. O direito à Educação dos presos já é lei, portanto, não há que se discutir esse ponto. No entanto, podemos refletir sobre como proporcionar esta educação a eles, de modo que seja significativa. Isso é um desafio, pois, nunca se estudou a pessoa presa dos pontos de vista epistemológico, cognitivo ou neurológico e, sem tais estudos, não se sabe como ficam sua memória, seus neurônios ou sua capacidade de processamento cognitivo, com tantas variáveis de opressão, humilhação e desumanização.  Sem esses dados, como preparar adequadamente material didático pedagógico e professores para levar educação a eles? Este é meu o desafio, que assumi por meio da pesquisa científica.

A campanha Ler para Libertar, ação que integra o projeto de educação em prisões com participação da USP, reuniu doações de 10 mil livros para 40 prisões em Angola. Como foi o início desta campanha? Qual o objetivo esperado?  

RS - Eu coordeno um mestrado em Educação na Universidade Lueji A'Nkonde, no extremo leste de Angola, em parceria com a Faculdade de Educação da USP, e já estamos fazendo as primeiras defesas. Conheci a realidade prisional do país e achei que poderíamos aplicar lá algumas ações que desenvolvemos em prisões brasileiras, uma vez que, lá não existe nada em termos de educação. Levei uma mestranda e uma doutoranda e iniciamos uma experiência de colocar livros dentro de uma prisão, capacitar presos como monitores de salas de leitura e incentivar este hábito, inclusive por parte dos guardas, que também têm deficiências de escolarização. A experiência foi muito bem sucedida e o governo angolano topou a ideia de fazer o mesmo nas demais prisões do país. Já arrecadamos 10 mil obras de todos os tipos e estamos agora com uma campanha para arrecadas os recursos necessários para o transporte até Angola.

Foto: Arquivo pessoal.

Como nasceu sua relação com Angola? O que pensa sobre o atual governo angolano?

RS - Como afrodescendente, ainda que desconheça toda a linhagem e a genealogia, um dia o peso da ancestralidade deveria emergir e isso aconteceu num momento em que eu estava suficientemente qualificado para estabelecer diálogos construtivos com Angola e atender demandas que chegaram à USP, em virtude do esforço de interiorização do Ensino Superior no país. De uma única universidade existente, Agostinho Neto (em 2009), foram criadas sete outras universidades e todas vieram à USP em busca de parcerias. Eu aceitei "adotar" uma, a Universidade Lueji A'Nkonde, que responde por três estados na região mais afastada da capital. Esta parceria já dura 10 anos e no mestrado que construímos já estamos formando os primeiros acadêmicos. Qualquer que seja o grupo político no poder, lá ou aqui, vão existir os mesmos problemas de sempre, como corrupção, nepotismo, alianças espúrias e decisões equivocadas, mas, a ciência e a educação não devem se intimidar por essas questões circunstanciais, pois os desafios de ambas as áreas transcendem qualquer governo.

 As relações entre Brasil e Angola são antigas. Como o senhor encara o futuro da parceria entre os dois países?

 RS - Esta relação ficou um pouco comprometida com as investidas da Operação Lava Jato, que prejudicou a atuação de empresas brasileiras que estavam em Angola há bastante tempo. Eu resolvi investir num campo em que nossas vantagens competitivas são incomparáveis, como a história em comum, a similaridade da língua e a educação. A China, por exemplo, está muito presente em Angola, constrói de tudo, inclusive escolas, mas, não pode operá-las por conta das restrições de cultura e de idioma.

O sistema educacional angolano está pelo menos 60 anos atrasado em relação ao Brasil, portanto, se trabalharmos em uma relação honesta de cooperação acadêmico-científica, sem pretensões de um novo neocolonialismo, os países africanos de língua portuguesa deveriam ser, naturalmente, a prioridade da diplomacia brasileira.

Quais cientistas e pensadores da Educação o senhor admira? 

RS - Paulo Feire é, indiscutivelmente, e de longe, o mais importante teórico da Educação na atualidade, ainda que já tenha falecido.  Eu levei pelo menos 10 anos para entender o pensamento pedagógico de Paulo Freire e não tenho dúvidas que a Educação brasileira, além de tê-lo nomeado seu patrono, poderia se beneficiar muito mais se entendesse e aceitasse aplicar alguns de seus ensinamentos, que, aliás, são todos muito simples. Pontualmente, em tópicos específicos, são vários os autores a quem recorro para subsidiar a reflexão, mas, não há nada que substitua a pesquisa, a produção de conhecimentos novos e o constante diálogo quando assumimos tarefas como a formação de professores, por exemplo.

A Angola é um país jovem, que ficou independente em 1975, mas, já possuí universidades, juristas e um judiciário que se mostra bem ativo. O senhor não acha que países africanos, como Angola, sofrem muita discriminação no âmbito internacional?

 RS - Tenho a impressão que só querem mostrar aspectos ruins dos países africanos. Em Angola, como em todos os países que sofreram o processo da colonização, eles foram vítimas da expropriação capitalista. Roubaram suas riquezas, mataram seus animais, por pura cobiça e diversão. Contaminaram seus rios, mataram suas múltiplas culturas e escravizaram seus povos de uma maneira brutal, reduzindo-os a uma condição de subumanidade. Não é só discriminação. É a dominação militar, econômica e cultural que impede um povo de resgatar sua própria identidade, de reconstruir sua nação e de libertar seu povo da dominação e da opressão. Os dois principais aspectos da dominação internacional, hoje, se expressam pela exagerada cristianização deste povo, que nega suas culturas, suas tradições e suas ancestralidades, além de negar a presença chinesa que usa africanos apenas como mão de obra barata para consolidar seu sonho expansionista pela África.

É fato que o senhor já orientou dezenas de mestrandos e doutorandos na USP. Poderia destacar, nesta entrevista para a Fórum, algumas pesquisas de seus orientandos que considere grandes contribuições científicas? 

RS - Com a Juliana Gama Izar, demos consequência à ideia de que abrigos devem se orientar por um projeto político-pedagógico. Com Cauê Nogueira, desvendamos as razões da troca de nome de FEBEM para Fundação CASA. Já com a Carolina Bessa, nós ensaiamos um modelo de projeto político-pedagógico para a educação em Prisões, no qual, aliás, ainda estamos trabalhando. Com Edison Prado de Andrade, exploramos o Homescholling enquanto possibilidade na ampliação do direito à educação, e isso foi transformado em lei. Com Fábio Aparecido Moreira, praticamente desvendamos todo o histórico da educação em prisões no Estado de São Paulo.

Já com Roberta Belinato, descobrimos uma maneira fácil e barata de melhorar a empatia de professores por seus alunos, pois foi só institucionalizar na rede pública a visita domiciliar, para que professores visitem periodicamente a casa de seus alunos. Ainda estamos estudando outras coisas, como os efeitos da transferência precoce de responsabilidades dos pais para os professores e da família para a escola, e a formação da identidade e da subjetividade de crianças que são colocadas em creches aos quatro meses de vida.

Quais países possuem políticas educacionais que o senhor admira? Como podemos chegar nos níveis desses países?

RS – Conheço, ou conheci, políticas educacionais nos Estados Unidos, Coréia, Uruguai, Alemanha, Angola e Moçambique. Tenho parceiros de pesquisas na Finlândia, Itália, Portugal e Espanha. Cada um tem suas especificidades, vantagens e desvantagens, mas, destaco a do Uruguai, onde não se faz separação entre educação formal e educação não formal, ambas integradas numa mesma legislação, que não faz a clássica separação denunciada por Paulo Freire e Hürgen Habermas, de uma impermeabilidade entre os saberes construídos no mundo da vida e no mundo da escola. Em termos de desenho de política educacional, nenhum desses países precisa organizar de forma orgânica e sistêmica uma rede de cerca de 200 mil unidades escolares, com aproximadamente 2,2 milhões de professores, para atender algo em torno de 50 milhões de alunos. Fora da escola e do sistema oficial de ensino, ainda temos cerca de 570 mil ONGs, institutos e fundações que fazem Educação, envolvendo mais de 2 milhões de trabalhadores sociais e atendendo não apenas os alunos da escola pública, mas também suas famílias e suas comunidades. Isso significa que o Brasil ainda tem um estoque educacional que sequer tem consciência de sua existência.

*Roberto da Silva é pedagogo pela UFMT e mestre e doutor em Educação pela USP. É também Livre Docente em Pedagogia Social (USP). Atualmente, é professor Livre Docente do Departamento de Administração Escolar e Economia da Educação da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Leciona no Programa de Pós-Graduação em Educação e orienta mestrados e doutorados na linha de pesquisa Estado, Sociedade e Educação e supervisiona pós-doutorados nas mesmas áreas. É, ainda, editor da Coleção Pedagogia Social junto à Editora Expressão e Arte e participa do Conselho Editorial da Revista de Ciências da Educação (UNISAL), de Cadernos de Pedagogia Social (Portugal), da Revista Brasileira de Educação de Jovens e Adultos, da Revista Brasileira de Execução Penal.  Além disso, coordena o mestrado em Educação na Universidade Lueji A'Nkonde, de Angola, e coordena convênios neste país africano, assim como na Argentina e Alemanha. Foi o organizador dos Congressos Internacionais de Pedagogia Social (2006, 2008, 2010, 2012, 2015 e 2018) e das Jornadas Brasileiras de Pedagogia Social (16ª edição).  Atua como membro do Comitê de Ética em Pesquisa do Sistema Penitenciário do Estado de São Paulo e já recebeu diversos prêmios e homenagens.

(Fonte: Currículo Lattes)