Por que a direita gosta tanto de um estuprador?, por Raphael Fagundes

Diante dos repetidos casos de violações e abusos sexuais, a história e a psicologia pavimentam um caminho para que possamos compreender o porquê de homens conservadores minimizarem tantos crimes do gênero, sempre apelando para a moral sexual da vítima.

Foto: Tribunal de Justiça de Minas Gerais.
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Partiremos aqui de uma perspectiva foucaultiana. A proibição é uma frustração para o poder. O objetivo deste é que o sujeito aceite-o voluntariamente, sendo, assim, persuadido a se dobrar e até mesmo reproduzir os elementos do poder, porque neles acredita, ou porque vê para si uma vantagem no processo. O “interdito, a recusa, a proibição, longe de serem as formas essenciais do poder, são apenas seus limites, as formas frustradas ou extremas. As relações de poder são, antes de tudo, produtivas".[1]

A partir deste ponto de vista, podemos dizer que o estupro não é uma forma essencial de manifestação do poder masculino sobre a mulher, mas seu limite, sua frustração ou a forma extrema de exercer este poder.

Esse aspecto nos ajuda a entender porque a direita defende tanto estupradores, quando não, seus próprios componentes o são. O advogado que humilhou Mariana Ferrer defendeu Sara Winter e é fã de Olavo de Carvalho. O bolsonarista Rodrigo Constantino, da Jovem Pan, afirmou que não denunciaria os criminosos caso sua filha fosse abusada numa festa[2]. Robinho, condenado por estupro na Itália, disse que faria um gol, caso jogasse no Santos, e homenagearia o presidente Jair Bolsonaro...

Antes da era cristã, os homens tinham medo da vagina. Ela tinha o poder de evitar catástrofes no folclore popular europeu. Em diversas culturas espalhadas pelo mundo, contava-se que a genitália feminina tinha dentes, que dragões e cobras saíam do seu interior. As histórias contam sempre que um herói combateu estas feras ou extraiu os dentes da vagina numa tentativa de tornar a mulher mais dócil e obediente.[3]

Por muito tempo vista como a origem do mundo, o cristianismo atribuiu à mulher e à vagina a culpa pela danação do homem e de toda a humanidade.

Numa sociedade em que havia certa tolerância à violência e onde a mulher era vista como a causadora de todos os males, não restaria muita coisa para além da submissão. Uma mulher violada sem ser casada sofria consequências que uma mulher casada não sofreria, porque a injúria era “direcionada mais ao marido do que à vítima”[4].

Desconfiava-se sempre da mulher, a grande traidora, a mancomunada com o diabo, para levar o homem à perdição. Deste modo, quando vítima de estupro, era muito difícil de acreditar que a mulher estivesse falando a verdade. Acreditava-se também, por outro lado, na “submissão incontrolada": ela era tão submissa que ceder ao homem era quase que natural, o que poderia “fazer pensar que a mulher cedeu voluntariamente".[5]

Contudo, havia a ideia de que o homem tinha suas necessidades sexuais. Para impedir que os homens estuprassem as “mulheres de família”, investiu-se na prostituição. Faramerz Dabhoiwala diz que “a teoria e a prática da prostituição iria tornar-se cada vez mais central para a economia sexual" no século XVIII.[6]

Uma violência feita “a uma escrava, ou a uma serva, é menos grave do que a violência cometida contra uma filha de condição honesta", afirmava-se em 1771 na França, como mostra o historiador Georges Vigarello.[7] Ou seja, uma ideia muito parecida com a sustentada pela direita, que acusa o comportamento depravado da vítima como justificativa para o estupro. Entende-se que se a mulher fosse honesta, decente, boa cristã, jamais seria alvo de um sádico estuprador.

Já para a era vitoriana, Peter Gay interpreta que o estupro era uma forma de exercer a violência e não o desejo sexual. Em uma sociedade que cultivava o ódio, que por conta disto precedeu uma das guerras mais sangrentas, “o estupro não é um tributo a Eros; na violação de mulheres, a sexualidade não é a gêmea da agressão, mas sua serva".[8]

Talvez por conta disto a direita conservadora venere tanto o estuprador. Ela possui um discurso agressivo. A sexualidade excessiva é condenada, mas a violência não. Sendo assim, a vítima é quem abusa da sexualidade exibindo-se. Já o agressor exerce apenas a violência. No discurso direitista a violência é muito mais tolerável que a sexualidade – cabe lembrar que grande parte de seu discurso está baseada na degeneração sexual da sociedade.

Trata-se de uma questão histórica do direito conservador. Vigarello mostra que no Antigo Regime, “o estupro, como muitas violências antigas, é severamente condenado pelos textos do direito clássico e pouco penalizado pelos juízes”.[9] Gay, por sua vez, demonstra para a Belle Époque que, “muitos juízes e jurados ... sabiam por experiência própria que as mulheres eram provocantes... exibiam seus encantos para despertar os apetites sexuais dos homens".[10]

Para quem achou que as novas sensibilidades despertadas pelo feminismo e por outros movimentos do século XX enterrariam o discurso milenar de menosprezo ao estupro, enganou-se. A historiadora Piroska Nagy acredita que a ideia de um processo civilizador baseado na concepção de que na Idade Média predominavam as emoções irracionais, espontâneas, que desencadeavam a agressividade e que a modernidade inaugurou um controle destas emoções, como sugerem Johan Huizinga e Norbert Elias, não confere.[11] Não há um abismo emocional como se geralmente pensa. E de fato, ao lermos o livro de Peter Gay, vemos que o Ocidente no início do século era tão agressivo quanto os medievos. E, até mesmo hoje, como a direita faz questão de mostrar, ainda podemos identificar parâmetros sensíveis, semelhantes aos medievais. É como se “a instabilidade permanente da superfície” tivesse, “por contrapartida, a imobilidade quase definitiva das profundidades".[12]

Parece que, na verdade, o que se manteve foram os limites do poder. Tanto no Antigo Regime, quanto na Belle Époque (como nos dias atuais), o estupro é o limite do poder masculino sobre a mulher, não o poder propriamente dito. O estupro ocorre quando a reprodução e apropriação do poder, de forma voluntária, vantajosa e prazerosa, não deu certo. Somente quando o machismo tiver um fim, esse tipo de limite deixará de existir.


[1] FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979, p. 236.

[2] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/essencial/video-constantino-diz-que-se-sua-filha-fosse-estuprada-em-festa-nao-denunciaria-criminosos/

[3] BLACKLEDGE, C. A História da V: abrindo a caixa de pandora. São Paulo: DeGustar, 2003, p. 161.

[4] VIGARELLO, G. O que diz a lei: raptar, abusar, violar. In: CORBIN, A., COURTINE, J-J. e VIGARELLO, G. (Dirs.) História das emoções. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020, p. 484

[5] VIGARELLO, G. História do estupro. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 9.

[6] DABHOIWALA, F. As origens do sexo. São Paulo: Globo, 2013, p. 383.

[7] VIGARELLO, 2020, op. Cit., p. 495.

[8] GAY, P. O cultivo do ódio. São Paulo: Cia das Letras, 1995, p. 208.

[9] VIGARELLO, 1998, p. 14.

[10] GAY, op. Cit., p. 207.

[11] NAGY, P. A emoção na Idade Média: um período de razão. CORBIN, A., COURTINE, J-J. e VIGARELLO, G. (Dirs.) História das emoções. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020, p. 170-171.

[12] JULIARD, J. A política. In: LE GOFF, J. e NORA, P. História: novas abordagens. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976, p. 192.