Novo Ano, Novas Narrativas: AmarElo, Soul e A Voz Suprema do Blues, por Filippo Pitanga

Já que não teremos praia e fogos de artifício, confira produções na telinha de sua casa no Réveillon, ao ritmo de nomes prestigiados como Emicida, Pabllo Vittar, Majur, Fernanda Montenegro, Denzel Washington, Viola Davis, entre outros

Foto: AmarElo (divulgação)
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Celebrando a chegada de 2021 com suingue e gingado pra renovar os ares de um ano difícil, vamos falar sobre filmes que acabaram de aportar nos canais de streamings ao som de muito samba e hip hop... Ou mesmo de blues, jazz e soul. Mas isso não quer dizer que sejam “musicais” propriamente ditos, mas sim que suas narrativas são construídas a partir da sonoridade e cadência melódica das imagens. Iremos ver como a composição de trilhas e partituras podem ser personagens e dizem muito da fabulação visual do cinema, e de nossas vidas, mesmo antes de abrirmos os olhos para vislumbrar como tudo se materializa na tela ou fora dela.

Como estamos ainda em plena pandemia, é hora da virada com muito cinema e música, na segurança de nossas casas, pra dançar e refletir ao mesmo tempo! A começar por “AmarElo – É Tudo Pra Ontem”, de Fred Ouro Preto, documentário da Netflix e do Laboratório Fantasma sobre o mais recente álbum homônimo do cantor e compositor Emicida. Além disso, a mesma Netflix traz um dos francos favoritos ao Oscar 2021, “A Voz Suprema do Blues”, dirigido por George C. Wolfe e produzido por Denzel Washington, com Viola Davis e Chadwick Boseman no elenco (que provavelmente receberá indicação póstuma). E por último, mas não menos importante, o provável ganhador na categoria de melhor animação em todas as premiações vindouras, “Soul”, de Pete Docter e Kemp Powers, lançamento da Disney Plus.

Vamos começar pela sensação do momento, “AmarElo – É Tudo Pra Ontem” que coloca em foco os bastidores do álbum homônimo do rapper Emicida, ao mesmo tempo que faz um inventário da história negra no Brasil, ressignificada e valorizada a partir do samba e seus flertes e afluentes no hip hop e no funk. O filme está tão em voga que foi destaque no programa de variedades da Rede Globo, o “Fantástico”, com participação do próprio cantor e das convidadas especiais Majur e Pabllo Vittar, para cantar sua versão do sample de “Sujeito de Sorte”, de Belchior – cujos versos “Ano passado eu morri, mas este ano eu não morro” viraram símbolo de resistência às agruras destes últimos anos (assista aqui).

Foto: AmarElo (divulgação)

Não é de hoje que essa tendência estética toma as telas da sétima arte, criando uma linguagem híbrida com álbuns visuais de grandes artistas no mundo do entretenimento que viraram “cinema sônico” (nas palavras de Beyoncé, que lançou neste sentido o seu próprio “Black is King”, em 2020, leia mais aqui). ‘Audiovisual’ compreende a palavra ‘áudio’ além de ‘visual’, mas esta é uma camada que as pessoas colocam em segundo plano perante roteiros habitualmente cheios de tramas e reviravoltas mirabolantes, ou diálogos bem escritos, mas que acontecem independente das personagens que os enunciam.

Ou seja, podemos colocar alguém para narrar o filme inteiro e jamais aparecer na tela, ou tampouco precisamos combinar o que está sendo dito com as imagens que estão sendo mostradas... Isso faz parte da tridimensionalidade com que podemos contar uma história. E, para além do que é dito ou mostrado, ainda existe a instância do intangível, o que você sente. E sentir não precisa de explicação.

Como toda boa música, não precisamos ‘ver’ o som para receber suas sensações em nossos poros, arrepiar os cabelos da nuca ou fazer os pés se mexerem. Por isso, álbuns visuais existiram por toda a história, mas nem sempre fizeram sucesso. O que faz deles mais do que um mero ‘show filmado’ ou ‘videoclíptico’? Talvez alguns exemplos positivos lembrados de imediato sejam “A Hard Day’s Night”, dos Beatles (1964), “Quadrophenia”, do The Who (1979) e a obra-prima “The Wall”, do Pink Floyd (1982), todos estes possibilitados pela fama das respectivas bandas e prestígio na época do auge do rock and roll, apesar de não deixar de haver algum privilégio branco envolvido nessa história.

A coisa começou a mudar quando o artista Prince lançou seu “Purple Rain” (1984) e saiu com o Oscar de melhor canção original para a faixa título, dando algo a mais do que apenas a mera representação visual de sua música, mas sim algo maior: um símbolo. Uma declaração. Isso quer dizer que representatividade importa, um lema bastante repetido aqui na coluna, e que continuará a ser repetido até introjetar naturalmente nos leitores.

E, como Beyoncé se destacou em 2020 com seu filme “Black is King” no cenário internacional, justamente por unir a sonoridade com as raízes históricas afrodescendentes, antes ausentes no filme “O Rei Leão” (de onde o álbum havia primeiro se originado como trilha sonora), não é exagero algum dizer que Emicida fez o mesmo para o Brasil com o seu “AmarElo” – álbum e filme. Existe neste documentário algo que vai muito além dos bastidores do show do artista no Teatro Municipal de São Paulo, o que por si só já se trata de um marco, o qual decoloniza um histórico elitista da arte que fez daquele prédio outrora um muro separatista em nome da branquitude – um privilégio antes impossível para a cultura emergente da periferia, por exemplo.

Entre performances no palco e entrevistas nos estúdios, o filme traz, proporcionalmente, uma enciclopédia invisibilizada nas mídias hegemônicas de referências a figuras históricas cruciais para a constituição da sociedade brasileira, porém pouco creditadas até hoje. Desde pensadores, artistas, músicos e políticos... Um movimento de resgate muito necessário que vem acontecendo, podendo ser citada também a obra “Falas Negras” da Rede Globo, dirigida por Lázaro Ramos (leia mais aqui).

E por isso é crucial que “AmarElo” venha a somar com ainda mais nomes envolvidos na própria formação do país, como a geografia afetiva no urbanismo das cidades, vide Joaquim Pinto de Oliveira, conhecido como Tebas, arquiteto responsável por construções como a torre da antiga Igreja Matriz da Sé (1750), a fachada do Mosteiro de São Bento (1766), etc. Valendo ressaltar como até estes desbravamentos estavam interligados às origens afrobrasileiras, narradas pela oralidade e pela música de resistência, e não a uma estrutura européia como se costuma creditar, o que amplia e fundamenta, inclusive, as letras de Emicida.

Além de Tebas, aparecem na tela outras figuras que fundaram movimentos e coletivos e até se tornaram políticos, como Abdias do Nascimento, autor do livro “O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado” e fundador do Teatro Experimental do Negro (onde se formou Ruth de Souza). Além de Leci Brandão, primeira mulher a se unir aos compositores da Mangueira. Ambos supracitados foram eleitos deputados, lutando com pioneirismo por algumas políticas antirracistas. Sem deixar de lembrar as pensadoras do naipe de Lélia Gonzalez, professora, escritora e ativista que participou da formação do PT e do PDT, bem como da Assembleia Constituinte de 1.988 e do primeiro Conselho Nacional dos Direitos da Mulher.

Há imagens preciosas que misturam desenho animado, entrevistas e arquivos em meio às composições de Emicida, como das personalidades da música Nelson Cavaquinho e Candeia, pouco vistos em nosso audiovisual do jeito que mereciam, restritos mais a obras do Cinema Novo, há de exemplo “Nelson Cavaquinho” (1969) e “Partido Alto” (1982), ambos de Leon Hirszman.

Só que, agora, estamos vendo a revolução tanto na frente quanto atrás das câmeras, numa fusão de linguagem vanguardista... Não apenas pela potência de juntar raça e gênero, convidando artistas trans e negras pra cantar com ele (Pabllo e Majur), ou por decolonizar o Municipal com um telão do lado de fora, para que as pessoas que não puderam pagar tivessem a chance de assistir ao show... Tudo isto bastante poderoso, decerto.

Porém vai além... E refabula o próprio arcabouço social. Pra ficar num único exemplo de muitos, este filme iria juntar a grande Ruth de Souza com Fernanda Montenegro, duas das maiores atrizes do Brasil e que cinema nenhum havia pensado antes em colocar sob o mesmo holofote... Este é o nível de vanguarda desta obra, mas que, pelo falecimento de Ruth ano passado, isto acabou sendo impossibilitado no mundo de carne e osso. E é justamente por isso, por esta ousadia de sonhar e concretizar, que filmes como este precisam existir, para além do mundo material, para tornar as ideias imortais.

De forma similar, mas não tão abrangente, acabamos de ter o lançamento de duas produções norte-americanas com esta mesma fusão de narrativa e melodia, porém com outros tipos de escopo em redimensionar um inventário histórico da cultura negra a partir da música: “A Voz Suprema do Blues” (“Ma Rainey’s Black Bottom”), de George C. Wolfe, e “Soul”, de Peter Docter e Kemp Powers.

O primeiro, mais uma adaptação das obras do dramaturgo August Wilson, novamente produzida por Denzel Washington, que já havia vertido pro cinema a peça ganhadora do Pulitzer “Cercas”, do mesmo autor – e a qual rendeu o Oscar de melhor atriz coadjuvante para Viola Davis. O segundo, uma animação da Pixar que teria sido anunciada na seleção oficial do Festival de Cannes 2020, antes de este ter sido cancelado devido à pandemia mundial (leia aqui)...

Ambas produções constroem o imaginário visual a partir de uma dança de suas personagens entre o texto e subtexto: seja em planos-sequências que se movem junto com a câmera no molejo do trompete, ou na batida do pedal do piano, no primeiro caso, seja na abstração da montagem que passeia entre o concreto e o abstrato na passagem de uma nota para a outra, no segundo caso.

Isto porque, mesmo inspirado em fatos reais, “A Voz Suprema do Blues” usa de mise-en-scène teatral, uma pantomima mais estática em poucos cenários, apesar de não se permitir engessar muito justamente por causa da música, acompanhando um dia de gravação do álbum de Ma Rainey (Viola Davis), ícone verídico do blues antes mesmo de Bessie Smith ficar famosa nos anos 1920.

Já “Soul” acompanha o protagonista Joe Gardner (Jamie Foxx), um professor e músico frustrado com sua vida, até que morre no dia em que sua carreira parecia dar uma virada, transitando a partir daí entre o mundo dos vivos e dos mortos para tentar completar sua “missão” na Terra... Assunto um pouco tabu ainda para as crianças, mas numa relação de confiança estabelecida pela Disney/Pixar com espectadores de todas as idades, já que vem treinando as famílias para temas cada vez mais maduros a cada filme, inclusive sobre o luto e o além, como “Up – Altas Aventuras” e “Viva – A Vida é uma Festa”. Não é como se a Disney fosse estranha ao complexo Hamletiano de matar o pai e a mãe em seus filmes desde sempre!

Foto: Soul (divulgação)

Vale ressaltar que nem tudo são louros. Num viés mais crítico, este que vos escreve já não era um grande defensor da adaptação anterior de August Wilson para o cinema, “Cercas”, apesar de reconhecer o valor do texto e dos diálogos evocados na peça. Sua versão na telona não conseguiu se libertar do típico “teatro filmado” e poderia facilmente ter sido importada para “A Voz Suprema do Blues” com seus cacoetes e estereótipos de palco, já que a trama quase inteira cabe em dois recintos do filme, onde ocorrem as gravações e ensaios de Ma Rainey.

Porém, eis que é justamente a música que liberta o quadro, triangulando a cena com o extracampo sociopolítico. Existe algo muito poderoso em focar numa das primeiras gravações de álbuns da música negra na história, invertendo as polaridades de controle para quem detinha o talento da voz e dos instrumentos, ao invés dos donos do estúdio. Além disso, o blues se embrenha nas próprias identidades cênicas de suas personagens, numa emancipação profissional contra a estrutura de poder do mundo predominantemente branco no topo da pirâmide dos detentores do capital, num duelo entre tons de marrom, verde e amarelo na direção de arte (a pele versus o dinheiro e o ouro). Uma sofisticação de roupas, carros e seguidores que não era dada naturalmente para a classe artística, tinha de ser tirada à força do status quo.

Pois esse protagonismo vigoroso é intensamente canalizado pela já citada Viola Davis (que, vale lembrar, não canta no filme, e sim dubla com intensidade equivalente às gravações originais de Ma Rainey, chegando a dilatar veias na região do gogó), além do saudoso Chadwick Boseman (no papel do jovem compositor ‘revelação’, que é tão rebelde quanto temerário em sua bela malemolência niilista). Sua camaleônica interpretação meteórica, inclusive, não está cotada para as premiações apenas pelo presente filme, mas talvez para indicações simultâneas, como ator coadjuvante por “Destacamento Blood”, de Spike Lee, outra produção forte mirando no Oscar 2021 (leia aqui e aqui).

Só que não é apenas a dupla principal que talvez receba reconhecimento de estatuetas, e sim igualmente o elenco de suporte, com nomes do naipe do veterano Glynn Turman, no papel do pianista Toledo, o qual rouba todas as cenas em que aparece. E, incorporando o braço direito de Rainey, o ator Colman Domingo dá vida a Cutler. – Inegável dizer que Colman é uma das vozes mais marcantes do audiovisual contemporâneo, como no filme “Se a Rua Beale Falasse”, de Barry Jenkins, e no recente especial de Natal da brilhante série “Euphoria”, no qual também foi bastante teatral, mas cuja pantomima fortuitamente deu certo tanto aqui quanto acolá.

Por outro lado, o igualmente musicado “Soul” tinha outro obstáculo crítico a ser ultrapassado, que seria o de fundir a maturidade de um tema adulto sobre a morte com o fino humor e fofura típicas das animações, que não podem faltar para o público infanto-juvenil (é o que garante muitos royalties de merchandising para a Disney, personagens fofos e vendáveis). Talvez, por isso mesmo, e admitindo poder estar errado, nosso maior receio na dramaturgia, ao longo da projeção, era como lidariam com o equilíbrio entre uma belíssima técnica pictórica a retratar a realidade, como em clubes noturnos de jazz e escolas públicas de música, e a estética de algodão doce do paraíso, numa quebra brusca de imersão...

Foto: Soul (divulgação)

Aliás, praticamente nada é falado sobre separação entre céu e inferno, por sinal, o que poderia desperdiçar metade da dramaturgia em potencial do filme – apesar de que poderíamos analisar o espaço entre vidas como um limbo, ou um purgatório de aprendizado a partir da repetição dos mesmos atos do mundo carnal. E é aí que o filme cresce, e cresce muito.

O que acaba acontecendo é a personagem ‘fofa’ da vez, a alma chamada de ‘22’ (na voz de Tina Fey), com medo patológico de encarnar num corpo físico, ganhar a sacada perspicaz da inversão dramatúrgica: de alívio cômico para conteúdo existencial. E aquele que era o ponto de tensão anterior troca de lugar com o lado mais comediante do filme. Algo raríssimo para quaisquer personagens dos estúdios Disney/Pixar. Tipo a mistura entre o divertidíssimo “Um Espírito Baixou em Mim”, com Steve Martin e Lily Tomlin, e o drama “Um Visto Para o Céu”, com Meryl Streep e Albert Brooks.

Infelizmente, com esta inversão, também vem outro lado da moeda, que é a voz de uma atriz branca incorporar os dilemas da identidade de um homem negro, quando podiam ter alcançado um avanço considerável se houvessem idealizado a personagem ‘22’ como a voz de uma atriz negra. A potência do encontro entre a identidade negra masculina e feminina seria algo sem precedentes neste sentido espiritual para o cinema, o que teremos de continuar esperando pra ver... Porém, ainda assim, o lugar de escuta exercido entre os protagonistas, de forma interseccional, talvez tenha sido na medida para o que a virada de 2020/2021 necessitava, num exercício de empatia fulcral perante o momento histórico mais polarizado do que nunca.

E é neste momento, enfim, que a estética de algodão doce pincelada com toques de algoritmos à la “Matrix”, como se o limbo fosse administrado por um grande computador (ábaco, na verdade), faz todo sentido! Pois estes mesmos dados podem ser corrompidos ou adulterados e não há nada mais humano do que a distorção da perfeição. Vide uma cena perto do final (sem spoiler) que homenageia a clássica personagem ‘Sem-Face’, de “A Viagem de Chihiro”, dos Estúdios Ghibli. Isto porque “Soul” é um filme sem vilões, apenas espelhamentos fragmentados de nós mesmos. Afinal, o que poderia ser antagonista perante a complexidade da morte? Não haveria obstáculo maior do que a angústia presente em mais da metade de todas as histórias da sétima arte.

Portanto, o verdadeiro valor que “Soul” acrescenta a esta lista sonora é fazer o caminho inverso do cinema. É partir dos grandes acontecimentos para redescobrir as pequenas coisas da vida, as nuances mais ‘invisíveis’, a formar uma verdadeira orquestra de detalhes da composição dos tons de nossa alma. E isto faz desta a maior catarse dentre os três filmes aqui correlacionados, mesmo sem o inventário de um ou as presenças cênicas do outro. Mas aconselho ver o trio em sequência, de forma complementar, requebrando o esqueleto até 2021 chegar. Porque “ano passado eu morri, mas este ano eu não morro”.

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