A hipocrisia do discurso contrário ao isolamento social em tempos de pandemia

Leia na coluna de Raphael Fagundes: "Não foi a pandemia que criou essa realidade, mas o capitalismo"

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“A elite econômica do país pode fazer home office e tem uma reserva financeira ao contrário da grande maioria dos autônomos, do trabalhador comum que está proibido de trabalhar e de ter uma vida econômica” – disse Caio Coppolla, comentarista da CNN Brasil. Esses ideólogos defensores do fim do isolamento manipulam a discussão em torno da quarentena, afirmando que se trata de uma questão política e não de uma questão de ciência e saúde pública.

Trata-se da mesma estratégia usada para esconder as verdadeiras razões econômicas por trás da exploração do trabalho: estratégias ideológicas.

Apoderam-se de um discurso sobre luta de classes, discurso elaborado por Karl Marx para esclarecer a relação que houve entre exploradores e explorados ao longo da história. Em uma época na qual se fala tanto em apropriação cultural, temos que observar também a apropriação discursiva que, dentro de uma estrutura retórica, usa da hipocrisia para defender o grande capital.

Trata-se de uma hipocrisia usada pelos grupos dominantes para manipular a indignação das camadas populares. Para se apropriar da ideia de luta de classes, o principal elemento que precisou ser subtraído de tal discurso marxista foi o teor revolucionário.

Até uma empresa como a Viacom, um megaconglomerado do entretenimento, já havia usado tal argumento como estratégia. Em uma ação que moveu contra o YouTube e o Google, declarou: “Não há dúvidas de que o YouTube e o Google estão continuamente colhendo os frutos de nossos esforços sem permissão e destruindo um imenso valor no processo.

Esse valor pertence por direito aos escritores, diretores e outros talentos responsáveis por sua criação...”.¹ A Viacom argumenta que o YouTube está explorando uma mão de obra sem pagar. Mas, na verdade, o trabalho já não foi pago pela própria Viacom. O trabalho humano já havia sido transformado em mercadoria, e parte dele se transformou em lucro antes mesmo de o YouTube compartilhá-lo.

O discurso que defende o fim do isolamento é ainda mais hipócrita que o da Viacom. Reivindica uma suposta solidariedade pelos trabalhadores quando, na verdade, está em defesa dos patrões. Até porque não se está contra o fato de a elite econômica “trabalhar" do seu home office, apenas se constata que os trabalhadores não têm condições de fazer o mesmo. Ou seja, pretende-se preservar as relações tradicionais, omitindo-se o fato de que são os patrões que não têm condições de que os trabalhadores fiquem em casa, de modo que a “vida econômica” do trabalhador, da qual fala Coppolla, é presa aos interesses geradores de valor para os capitalistas.

De acordo com Karl Marx, os elementos fornecidos pela natureza possuem valor de uso sem valor. Isso porque não houve trabalho humano. O que transforma esses elementos em mercadorias, atribuindo a eles um valor, é o trabalho humano. Portanto, não são os objetos que se transformam em valor, mas o trabalho humano. Quando se compra um produto, compra-se trabalho humano. Quando se vende um objeto, vende-se trabalho humano.

“A conversão dos objetos úteis em valores é, como a linguagem, um produto social dos homens".² Quando, portanto, o representante da Viacom estava falando de “valor", estava se referindo à “quantidade de trabalho contida em uma mercadoria".

Mas é do valor que surge a mais-valia. Por exemplo, se um investidor comprou uma madeira por 10 reais e pagou 20 a alguém para transformá-la em um armário que, por sua vez, foi vendido por 50 reais, o trabalhador adicionou a madeira um valor de 40 reais. Mas ele recebeu apenas 20. Se somente trabalho gera valor, 20 reais não foi pago pelo trabalho. Ou seja, os 20 reais de lucro é parte do trabalho humano não pago. Este processo é chamado por Marx de mais-valia. “A lenda teológica conta-nos que o homem foi condenado a comer o pão com o suor de seu rosto. Mas a lenda econômica explica-nos o motivo por que existem pessoas que escapam a esse mandamento divino".²

A hipocrisia no discurso que defende o fim do isolamento está no fato de se manifestar somente agora que as elites podem trabalhar de casa, enquanto os trabalhadores estão condenados a se dedicarem à labuta nas fábricas, nas ruas e nos shopping centers. Na verdade, o burguês não trabalha, já que o valor que se adiciona ao produto não vem de seu trabalho. Um número de “trabalhadores explorados ao mesmo tempo e a consequente quantidade de mais-valia produzida” são necessários para “liberar o empregador do trabalho manual e transformá-lo de mestre artesão em capitalista, estabelecendo-se, assim, formalmente, o sistema capitalista". Ou seja, no sistema capitalista, patrão não trabalha. “O comando do capitalista no campo da produção torna-se então tão necessário quanto o comando de um general no campo de batalha".²

Por não trabalhar entende-se não dispender força de trabalho de forma direta na transformação da matéria-prima em valor. A elite econômica nunca precisou ir ao local de trabalho, sempre pôde resolver os problemas remotamente. Então, Caio Coppolla é um hipócrita por manipular uma ideia (luta de classes) contrária ao que realmente defende (o sistema capitalista) para legitimar o óbvio, o fato de o trabalhador comum ter que trabalhar enquanto as elites ficam em casa. Não foi a pandemia que criou essa realidade, mas o capitalismo.

Vemos posts de pessoas nas redes sociais com fotos de trens e ônibus lotados para descrever uma desigualdade que parece ter sido criada pela epidemia do Covid-19, mas que é fruto das relações sociais desenvolvidas na estrutura do próprio capitalismo. Ou seja, não há nenhuma preocupação ou solidariedade para com os trabalhadores o com o pequeno empresário, o que se quer é manter a produção do jeito que ela sempre foi, forjando mais uma vez ideologias para esconder verdades científicas e econômicas.

Referências

¹BURGESS, J. e GREEN, J. YouTube e a revolução digital. São Paulo: Aleph, 2009.

²MARX, Karl. O capital: crítica da economia política: livro 1, v. 1, tradução de Reginaldo Sant’Ana, 30.ed. Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, 2012.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum