Milton Nascimento e Ruy Guerra compuseram, em 1976, a linda "E dai?", para o filme "A Queda", de Ruy Guerra. A canção, gravada no álbum “Clube da Esquina 2”, relata a agonia de um operário da construção civil que morre em acidente de trabalho.
Cada uma de suas estrofes, narradas na primeira pessoa do operário, relatam de maneira contundente a sua exclusão histórica:
“Meus gritos
afro-latinos
Implodem, rasgam, esganam
E nos meus dedos dormidos
A lua das unhas ganem”
Ao final de cada um dos versos/estrofes, um refrão reproduz o desprezo de séculos, como que dito pelo patrão, pelo mercado, enfim, por um poder maior que o mantém assim, ali, naquela condição de quase vida, quase morte pela eternidade.
A canção, espantosamente bonita e lírica, de melodia tensa, repete com as múltiplas vozes do próprio Milton, o epitáfio doloroso e inevitável:
“E daí?”
Ao final, a canção revela o contraste e legitima, diante de tantos contrastes, o próprio ódio:
“Iguarias na baixela
Vinhos finos nesse odre
E nessa dor que me pela
Só meu ódio não é podre
Tenho séculos de espera
Nas contas da minha costela
Tenho nos olhos quimeras
Com brilho de trinta velas
E daí?”
Mais de 40 anos depois, ao responder a repórteres sobre o fato do Brasil ter passado a China no número de mortes provocadas por Covid-19, o presidente Jair Bolsonaro (Sem Partido-RJ) repete o mesmo mote de séculos, eternizado pela canção de Milton e Ruy Guerra:
“E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”. “Ninguém nunca negou que teremos mortes”, disse ainda.
O monstro de Milton Nascimento e Ruy Guerra, que, naquelas alturas da abertura política do final dos anos 70, início dos 80, parecia preparado para adormecer para sempre, reaparece vivo.
Nunca uma canção foi tão atual.