Os Passos de John, por Manoel Herzog

No livro OS PASSOS VERMELHOS DE JOHN, do paranaense Luigi Ricciardi, o escritor americano John dos Passos, expoente da chamada Geração Perdida dos anos 20, visita a cidade de Maringá na década de 50, fato real que serve como ponto de partida da narrativa

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Pra quem cresceu em meio dos livros, não raro os escritores se tornam em super-heróis. Comigo foi assim e mais engraçado foi, na fase adulta, me tornar amigo de alguns heróis que alcancei vivos. Das crianças brasileiras duas categorias tem esse privilégio, as que, amando arte ou esporte, se vão tornar artistas ou atletas (não há notícia de criança que goste de político, por exemplo). As de pendor artístico ainda levam a vantagem de encontrarem seus heróis, se vivos, no auge, pois a idade os tende a melhorar; ao passo que os atletas estão aposentados quando os discípulos os alcançam. Fora isso, ninguém se torna amigo do Superman ou da Mulher Maravilha.

A idolatria matinal por escritores tende a, na fase de produção de sua própria literatura, fazer com que alguns escritores romantizem a vida de seus heróis. Jorge Amado escreveu o ABC de Castro Alves, Ana Miranda botou Gregório de Matos como personagem em Boca do Inferno. O paranaense Luigi Ricciardi segue a linha no ótimo OS PASSOS VERMELHOS DE JOHN (Penalux, 2020) colocando o americano John dos Passos, expoente da chamada Geração Perdida do anos 20, enquanto protagonista de seu romance. Partindo de um fato histórico real, de que Dos Passos efetivamente visitou a cidade de Maringá na década de 50, desenvolve um enredo instigante e bastante verossímil, borrando as fronteiras entre História e ficção.

A cidade paranaense é pródiga em paradoxos: revelou um orgulho da cultura nacional, a divina Sonia Braga, e uma vergonha também de proporções nacionais com reflexos no universo, o ex-juiz Sérgio Moro, que destruiu um projeto de nação a partir da degradação que promoveu no Poder Judiciário. Fundada muito recentemente a partir da colonização do Estado, Maringá é fruto de desmatamento criminoso, imposição de violência a trabalhadores, capitalismo predatório etc, nada muito diferente do restante das cidades brasileiras. Dos Passos a visitou num momento inicial e viu diversas semelhanças com a colonização não menos brutal do oeste norte-americano. A trama envolve a perseguição que o escritor sofre de um membro da KGB, caçador de ex-comunistas. Importa lembrar que Dos Passos, inicialmente um intelectual de esquerda, tornou-se gradativamente extremista de direita, apoiando o Macarthismo, fato que lhe rendeu muito do oblívio a que é relegado se o comparamos, por exemplo, com notáveis feito Hemingway ou Fitzgerald, seus contemporâneos. Outra faceta interessante do livro de Ricciardi é o suposto caso de amor entre o escritor e a mulher que teria dado nome à cidade, a paraibana Maria do Ingá, aquela de Maringá, Maringá, clássico do cancioneiro nacional composto por Joubert de Carvalho. A cabocla Maringá, uma bela mulher, surge no livro como sindicalista que veio do êxodo nordestino e se fixou no Sul, naquele rincão.

Ricciardi, experiente literato, estudioso, conduz com inteligência a trama e cria um livro referencial. Não pude deixar de anotar um dado: Dos Passos é também o nome de um personagem do romance de Carlos Heitor Cony, Pilatos. A referência ao estadunidense de origem lusitana é clara, até porque o Dos Passos do livro de Cony é também ele um escritor. E o próprio Cony, que iniciou na literatura enquanto potencial militante de esquerda, também foi com o passar dos anos se tornando mais e mais reacionário, até morrer recluso e misantropo, faz poucos anos, final não muito diferente que de seu êmulo, Dos Passos. Vale a leitura dessas obras até para se compreender que razões podem levar um intelectual a abdicar do heroísmo, optar pelo desprezo dos companheiros de trincheira, e abraçar o triste epíteto de desertor por desilusão ideológica.

Serviço: OS PASSOS VERMELHOS DE JOHN, Editora Penalux, 2020, R$.40,00