Encruzilhada: Entre a sombra do pinochetismo e a superação do neoliberalismo – Por Carlos Eduardo Rezende Landim

A eleição sinaliza uma batalha central entre as forças de mobilização ativas desde 2019, e que pretendem fazer do chile a “Tumba do neoliberalismo,” e os saudosistas dos tempos de Pinochet

Foto: José Antonio Kaste e e Gabriel Boric (BBC/Reprodução)
Escrito en OPINIÃO el

Por Carlos Eduardo Rezendo Landim *

O Chile se encontra diante de mais uma encruzilhada histórica. As eleições ocorridas no último dia 21 de novembro sinalizaram uma tendência paradoxal em relação aos últimos acontecimentos no país. Se desde 2019 o país tem sido referenciado como palco de vitórias sociais relevantes – quando a revolta popular que buscava fazer do Chile “a tumba do neoliberalismo” alcançou o triunfo de escrever uma nova Carta Magna –  o resultado do primeiro turno indica que a possibilidade de vitória não está prescrita e se alcançada, não será sem percalços no caminho.

O segundo turno das eleições que será decidido no próximo dia 19 de dezembro, será disputado entre um candidato da ultradireita, José Antônio Kast, do Partido Republicano, que obteve 27,9 % dos votos,  e Gabriel Boric, da aliança Apruebo Dignidad, uma coalizão progressista que reúne a Frente Ampla e o Partido Comunista, que contou com 25, 8% dos votos. O terceiro lugar, surpreendentemente, ficou com o candidato Franco Parisi, que reside nos Estados Unidos e que não foi ao Chile durante a campanha, pois corre o risco de ser preso por dívida na pensão alimentícia de seus filhos. O candidato governista, Sebastián Sichel, ficou em quarto lugar, com apenas 12,79%, certamente afetado pelas recentes denúncias contra o atual presidente no Pandora Papers.

Saudoso dos tempos nefastos da ditadura e abertamente pinochetista, Kast sustentou ao longo da campanha que se o ditador estivesse vivo votaria nele. Sua campanha se concentrou em mobilizar uma base social através do discurso policialesco típico da ultradireita latinoamericana de ordem e segurança, diminuir a presença do Estado nas instituições, abrindo caminho para privatizar o restante das empresas estatais chilenas, além de eliminar o Ministério da Mulher e da Equidade de Gênero. Boric, militante estudantil histórico desde 1999, em contraposição, buscou enfatizar o caráter popular, democrático e antifascista de sua campanha, acenando para os setores que desde 2019 se levantam contra o fundamentalismo neoliberal chileno expresso na constituição de 1990.

O pano de fundo que marca o processo eleitoral é uma crise multidimensional e um processo constituinte cercado de incertezas. O resultado eleitoral evidencia a agudização do conflito social e o enfrentamento aberto entre dois rumos propostos para a Nova Carta Magna que deverá ser escrita até outubro de 2022. Entre os temas urgentes de debate da Constituinte estão a utilização dos recursos naturais, os impactos da mineração, o acesso a serviços públicos, a reversão da privatização da água, políticas que promovam igualdade de gênero e de forma ampla, a reversão dos mecanismos que mercantilizam diversas instâncias da vida social, como educação, saúde e lazer. Outra demanda histórica que atravessa o debate constituinte é o tema do Estado Plurinacional, que busca reconhecer os povos originários e alterar a bandeira do país.

De um lado, Kast representa os setores que rechaçam o processo de rebelião popular de 2019 e pretendem fazer da nova constituição o famoso lema do escritor italiano Giuseppe Di Lampedusa: “algo deve mudar para que permaneça tudo como está”, ou seja, realizar tímidas mudanças mantendo o núcleo duro da velha Carta Magna que mantém o neoliberalismo como razão de Estado e institucionaliza a noção de direitos sociais como subsumida à garantia de liberdade econômica. Em contraste, Gabriel Boric, endossa uma mudança radical no modelo democrático vigente, se apoiando nas forças de mobilização que se mantêm organizadas e buscando diálogo com setores amplos da oposição.

As eleições foram um terremoto político para os partidos tradicionais da ordem pós-Pinochet. Pela primeira vez desde a redemocratização, nenhuma das duas tradicionais coalizões, a Concertación, de centro-esquerda, e a Aliança, de centro-direita, que estiveram no poder em mais de trinta  anos, estão no segundo turno. A chave-interpretativa dessa mudança na fisionomia político-social do Chile deve ser o encadeamento histórico de mobilizações e lutas sociais dos setores que nunca foram incluídos de fato no pacto de redemocratização, que culminou na rebelião popular de 2019, com as conquistas políticas que decorreram desse processo e com o nítido esgotamento do pacto social instaurado em 1990, que manteve intacto os alicerces da política econômica pinochetista.

O acúmulo de contradições e a ebulição do conflito social no Chile

As concessões ao legado da ditadura realizados pelos governos subsequentes ao pacto democrático e a não alteração significativa de pontos cruciais da constituição legitimaram uma ordem que foi historicamente modelada pela repressão, financeirização dos direitos básicos e criminalização dos movimentos sociais, o que resultou em uma transição democrática que não alterou o modelo de reprodução societário chileno, mas concentrou esforços na gestão “menos bárbara” do neoliberalismo. O legado da ditadura percorreu todos os governos, em maior ou menor medida, desde então, inclusive os dos presidentes eleitos pelo Partido Socialista, Ricardo Lagos (2000-2006) e Michelle Bachelet (2006-2010 e 2014-2018). Apesar de tais governos constituírem avanços pontuais, não levaram a cabo uma mudança estrutural que superasse a lógica neoliberal em questões como educação, saúde e previdência social.

O encadeamento histórico cujo desdobramento é a efervescência social de 2019, remonta ao início dos anos 2000, quando setores sociais, notadamente o movimento estudantil, começam a convulsionar-se lentamente. O ponto inaugural desse processo pode ser localizado no mochilazo, rebelião estudantil de jovens secundaristas que congregou cerca de 15 mil estudantes em Santiago que reivindicavam descontos e normalizações nos custos associados ao passe estudantil. Em 2005, o movimento que ficou conhecido como Pinguinazo, em alusão aos uniformes utilizados pelos estudantes, convocando mais de 1 milhão de estudantes secundaristas, contestou o modelo de educação privatista e excludente do Chile e obteve conquistas relevantes. Em 2011, estudantes universitários convocaram marchas, paralisações e ocupações, criticando a mercantilização dos direitos sociais, chamando uma participação ampla da sociedade. Gabriel Boric, projetou-se como liderança nacional nesse período, sendo o principal porta-voz da Confederação de Estudantes do Chile, tornando-se deputado federal dois anos depois.

Frank Gaudichaud, ao escrever sobre as fissuras do neoliberalismo chileno, sustenta que há um acúmulo histórico que faz parte de um mal-estar profundo que ultrapassa os espaços estudantis e emana também de outros setores sociais. Esse acúmulo desembocou nas mobilizações sociais abertas em outubro de 2019. Os protestos iniciados após o aumento no custo da passagem no metrô de Santiago, em um primeiro momento, tinham demandas específicas de revogação do decreto que prejudicava parte da população mais pobre. Menos de um mês depois, já era anunciado o plebiscito para consulta popular sobre a redação de uma nova constituição, enquanto que, pouco mais de três meses após o início dos protestos, diversos monumentos simbólicos que faziam homenagem aos colonizadores eram destruídos pela população como uma reivindicação de soberania e independência, de modo que “nascido de um motim secundarista contra o aumento das passagens do metrô, o levante mirou aos poucos o conjunto de políticas privatistas e de mercantilização da vida que infernizam a população”.

O interregno chileno

Em texto publicado neste mesmo espaço após a aprovação do plebiscito constitucional em novembro de 2020, sustentei que a guerra travada entre os agentes do Estado e os movimentos de reivindicação popular que ocuparam as ruas não cessaria com a aprovação do plebiscito e a etapa que se abria seria marcada por uma tentativa de controlar os possíveis avanços da constituinte. A eleição que ocorre nesse momento é uma batalha central dessa guerra. A vitória eleitoral da ultradireita no Chile, sinalizaria uma catástrofe para as forças de mobilização e diminuiria significativamente as chances de enterrar as bases do neoliberalismo chileno.

O fato de Kast ter chegado ao segundo turno pode sinalizar um aparente paradoxo, afinal, os últimos anos têm demonstrado uma correlação de forças favorável aos setores progressistas no Chile. A realidade, entretanto, é que os setores reacionários que buscam se contrapor às mudanças que podem surgir no próximo período também estão organizados e possuem uma base social relativamente sólida. Nesse sentido, se é verdade, como afirma Antônio Gramsci que “a crise consiste no fato de que o velho está morrendo e o novo não pode nascer e nesse interregno, uma grande variedade de sintomas mórbidos aparecem”, Kast aparece como um perigoso sintoma mórbido para as aspirações de transformação social no Chile. O 19 de dezembro será decisivo não apenas para os próximos quatro anos, mas sobre o legado das longas décadas de neoliberalismo e precarização social que atingem o país e também será um termômetro sobre as reais possibilidades de construir uma alternativa que supere esse modelo.

*Carlos Eduardo Rezende Landim é graduando em Relações Internacionais na PUC-SP e pesquisador do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC).

**Agradeço a Bárbara Blum pela revisão e comentários.