O general e a arapuca – Por Normando Rodrigues

Com Fernando Azevedo no TSE, Bolsonaro tenta prevenir uma inelegibilidade oportunista que o sacrifique em prol da tão desejada decolagem do zepelim de chumbo chamado Mister Moro

General Fernando Azevedo e Silva, o vice-presidente Hamilton Mourão e o presidente Bolsonaro (Agência Brasil)
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O general e a arapuca

Com Fernando Azevedo no TSE, Bolsonaro tenta prevenir uma inelegibilidade oportunista que o sacrifique em prol da tão desejada decolagem do zepelim de chumbo chamado Mister Moro.

 Eu × Nós

Desmancha-se o ano 21 do século XXI, em rupturas, continuidades e transições. Todas determinadas pelo embate fundamental desta quadra histórica, o conflito entre o egoísmo hipertrofiado e a consciência coletiva.

Ainda que comum ao fascismo e ao neoliberalismo, o individualismo agigantado chega ao extremo da brutalidade e violência política na ideologia de Mussolini, Hitler e Bolsonaro, e se manifesta em atos como os do ataque à imunização de crianças pelo Herodes do Planalto, por exemplo.

Barbárie ligeiramente menor, a religião dos ricos, o neoliberalismo, prega o domínio absoluto do “eu”, e ignora que cada um de nós é um ser social que só pode se realizar nas relações com os demais. É a idolatria ao “eu” que desvia recursos públicos dos direitos sociais (saúde, educação, trabalho, previdência...) em favor do lucro dos poucos que dominam a economia.

 Ideologia

A dominação somente é possível se o neoliberalismo for percebido não como uma ideologia, uma escolha por determinada visão de mundo, e sim como a natureza, a aparência induzida e sensível da “matrix”.

Assim dominados, os novos escravos se vêm alçados à condição de “colaboradores” e de “empreendedores”, enquanto são superexplorados e destituídos de direitos para além do limite da sobrevivência.

No entanto, o disfarce neoliberal se desmancha na mínima confrontação com a realidade, como ensina a pandemia de coronavírus, e sua quarta onda neste inverno europeu.

 Disputa

O clamor por intervenção estatal gerado pela crise mundial é combatido virulentamente pelos ricos. É o que ocorre na disputa do projeto trilionário de ajuda aos necessitados, do imperador Biden; na redefinição da legislação energética do México; e na convenção constituinte do Chile.

Se os dados desautorizam o neoliberalismo, às favas os dados. Os teólogos da seita afirmam descaradamente: deve-se proteger a economia (dos ricos) dos impulsos da soberania popular. Proteção de preferência assegurada pelo modo ditatorial de seu experimento inaugural chileno.

O sangrento 11 de setembro de 1973 abriu o país aos economistas da Escola de Chicago, e rendeu resultados. Com a desindustrialização, o empobrecimento e o aumento da desigualdade social, o Chile se tornou o estrondoso sucesso neoliberal que inspira nosso presidente fascista.

 Dote

Os feitos neoliberais chilenos foram conseguidos mediante o assassinato e tortura de dezenas de milhares de opositores, em clara demonstração do que é “democracia” para Paulo Guedes e seus coleguinhas.

Neste ponto o Chile nos oferece uma primeira lição: a funcionalidade do casamento de conveniência que une neoliberalismo e fascismo, no qual este último agrega à destruição dos direitos do povo a sua subversão da vontade da maioria.

Efetivamente, o dote com que o fascismo entra nessa união é o apoio da massa fascista à perda dos direitos civis, políticos e sociais, da própria massa.

 Transição

A segunda lição chilena reside na gravidade das consequências de não se promover uma Justiça de Transição, em seguida à derrocada de regimes de exceção. A convivência com assassinos é a amarga hipocrisia que certa colunista da Folha chama de “a civilidade política” do Chile.

Os ricos sabem que a responsabilização dos criminosos e reparação das violações a direitos humanos é essencial para a construção de uma institucionalidade verdadeiramente democrática, a qual reconfiguraria a economia. E por isso a evitam.

Lá e cá, o continuísmo de elementos e instituições autoritárias sufocou silenciosamente a necessária ruptura, e neste cerceamento está na raiz do fenômeno Kast, no Chile, e dos golpes de 2016 e de 2018, no Brasil.

 ¡Mueva todo menos la economia!

Salvo casos isolados, tipo o do “Anjo Louro”, condenado em 2018 pelo suplício e execução de Víctor Jara, o Chile deixou impunes crimes contra a humanidade, numa triste replicação da Anistia e Nova República brasileiras. Intocados os monstros, a redemocratização foi erguida a partir do compromisso com a manutenção da injustiça social.

Nas três décadas desde o fim da ditadura pinochetista, os 20% mais ricos mantiveram a apropriação de 60% da renda nacional, os 20% mais pobres ficaram com algo em torno de 4%, e o índice da desigualdade social praticamente não se alterou.

A indignação finalmente transbordou para as ruas de Santiago em 2019, e da enxurrada derivaram a Constituinte (por agora, em delicado impasse) e a vitória de Boric.

 Boric

Dois dias antes do 2° turno chileno, morreu Lucia Hiriart, casada com Pinochet por 63 anos e por ele alcunhada de “sua mão direita”. Muitas outras viúvas respiram, porém, com mãos e pés no “terço”.

Aplica-se ao Chile a regra brasileira dos “terços” aproximados. Boric teve mais de 55% dos votos válidos, sendo estes apenas 54% do colégio eleitoral, embora na melhor participação depois que o voto se tornou facultativo, em 2012.

Significa que a votação do vencedor espelha a posição de cerca de 30% da sociedade, com os quais enfrentará os inimigos declarados que compõem o terço oposto: a pseudo-elite chilena, tão obscena e estúpida quanto a nossa; sua porta-voz orgânica, a grande mídia; e as sempre ressentidas forças armadas e de segurança.

 Pindorama

Pseudo-elite, mídia, milicos e meganhas, são agentes do imperialismo americano e do neoliberalismo que assombram Chile e Brasil, países onde esse “terço”, e o “terço” da esquerda, são entremeados pelo terço de centro-direita, fiel da balança e alvo de alianças pragmáticas.

Pensadas as forças do terço de direita, e dispensadas maiores reflexões a respeito da pornográfica “nata” brazuca e de seus bem pagos e laureados arautos, é preocupante o silêncio que voltou a escudar os militares, sequer quebrado pela nomeação do ex-ministro da defesa de Bolsonaro para o TSE.

Dissimulado tal qual seu tutor Villas Bôas, Fernando Azevedo nunca rompeu com Bolsonaro. O Mito o dispensou em março porque o general perdera, de fato, o poder de mando sobre os comandantes das forças, e não por discordância ideológica ou ética.

 Mister Moro

Apesar disso, a miopia política que flagela os juízes-ministros, agravada pela arrogância típica das togas emboloradas, lê na presença de Azevedo no Tribunal Superior Eleitoral uma “garantia de lisura”.

Realmente Azevedo é um aval no TSE. Mas um aval a Bolsonaro.

Abundam os motivos jurídicos bastantes à exclusão da candidatura do Fascista à reeleição, quase todos tendo por prova cabal a logorreia do próprio quadrúpede. Com o general ali posicionado, o Mito busca prevenir uma inelegibilidade oportunista que o sacrifique para favorecer a tão desejada decolagem do zepelim de chumbo chamado Mister Moro.

 Plano C

Seja qual for a opção fascista da pseudo-elite (preservar o Hitler tropical; ou inchar artificialmente o juiz ladrão), seu pressuposto de viabilidade é a interdição do debate político, sobretudo a do literal: fugir de duelos televisivos com Lula.

Existe, contudo, um Plano “C” anunciado na forma de arapuca parlamentar-parlamentarista, reedição alquímica que mistura a trapaça contra João Goulart, em 1961, com o ungido golpe contra Dilma, em 2016.

Costuram o híbrido e teratológico “semi-presidencialismo” para deixar a Lula uma presidência esvaziada, em nome da blindagem da economia neoliberal. Todavia, é improvável que consigam explicar esta inovação a um aliado de inteligência mediana - digamos um “Luciano Huck” – e muito menos ao eleitor a ser lesado.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.