Por que o liberalismo nunca dará certo? – Por Raphael Fagundes

O liberalismo nunca deu certo e nunca dará. Ele é fruto de uma utopia mal-estruturada baseada no que o ser humano nunca foi: racional

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“A fé na razão implica a negação da razão, ou seja, a fé na razão implica fundar a razão na fé. Incrivelmente, a fé na razão acaba por dar razão à fé. Assim nasce o mito”.[1]

Tomando a liberdade de ir além do que acredita Eugênio Bucci em seu mais recente livro, defendo a ideia de que a fé na razão é a base da utopia liberal.

A dessacralização do Ocidente é um dos fenômenos da modernidade. Esta se gaba por tomar decisões baseadas na razão, diferente dos indivíduos do mundo tradicional. Essa visão deu substância ao liberalismo econômico. Um ponto de vista criado e sustentado pela burguesia revolucionária. Ela afogou o mundo nas águas gélidas do cálculo egoísta, promovendo um relacionamento baseado num vínculo de “interesse nu e cru” e “no lugar da exploração mascarada por ilusões políticas e religiosas colocou a exploração aberta, despudorada, direta e árida”.[2]

Mas esta visão não se restringe apenas ao século de Marx e Engels. Ela se alastra pelo século XX e se fortalece na sua segunda metade com o neoliberalismo.

Economistas como Milton Friedman, Theodore Schultz e Gary Backer defendiam a menor intervenção do Estado a partir da “premissa do paradigma da escolha racional”, que defende a ideia de “que o homem age por meio do cálculo entre custo e benefício”. Um paradigma que ganhou espaço nas universidades estadunidenses por apresentar-se ideologicamente “neutro” no cenário bipolarizado da Guerra Fria, mas que não possui nenhuma comprovação baseada em dados empíricos.

Logo nas primeiras páginas de seu livro, o neurocientista Antonio Damásio destaca que a “busca do lucro é impulsionada por diversos anseios – pelo desejo de progredir, de ter prestígio, pela cobiça –, e tudo isso são sentimentos”. De acordo com Damásio, a razão é um inventor e executor dos processos, “mas são os sentimentos que os motivam e que permanecem para aferir os resultados”.[3]

Johan Huizinga e Norbert Elias “alimentam o mito de uma emoção irracional, espontânea e natural, oposta à razão cartesiana”.[4] O século XIX, liberal por excelência, colocou a emoção como óbice do progresso. No século XX, a psicologia e a sociologia criaram o “mito das paixões”, que explicava o movimento das massas.

Forjou-se a ideia de que o progresso é racional, científico e em muitos casos, até mesmo tecnológico. Isso fez nascer uma ideologia tecnocrática, que serviu para a dominação e subjugação racional dos trabalhadores perante à organização técnica da relação capital-trabalho.

Contudo, o ser humano não age racionalmente. Não é a razão que convence uma pessoa do aquecimento global, de tomar a vacina etc. É a sua cobiça por lucro no presente ou o desejo de ter um futuro melhor para as próximas gerações. O que leva o indivíduo a agir não é a escolha racional, é muito menos o cálculo do custo-benefício que o prazer.

Não existiria propaganda se o ser humano não agisse pela emoção. E a propaganda é a alma do negócio. E são os negócios que movem o capitalismo. Ou seja, vivemos em um mundo que se move mais pela emoção que pela razão. Caso contrário ele não funcionaria.

O cálculo gélido da economia liberal que visa a maximização dos lucros não é racional. Ele serve apenas para manter o capitalismo funcionando na sua lógica desigual, atendendo às ambições e aos desejos dos mais abastados.

Em nenhum lugar do mundo houve desenvolvimento sem a intervenção estatal. Nenhum país cresceu a partir da escolha racional.

O problema do liberalismo é acreditar que existe apenas uma racionalidade. A racionalidade é, na verdade, atravessada por vários aspectos emocionais, de modo que não é mais possível ser cartesiano. Para entender o que leva o ser humano à ação, os linguistas que trabalham o processo de persuasão seguiram os estudos de Elster sobre a “visada acional”. Patrick Charaudeau coloca que “podemos supor que a visada acional e o desejo desencadeador não são únicos, eles são o resultado de uma escolha entre um conjunto de possíveis, e que para escolher entre este conjunto é necessário ter alguns conhecimentos sobre as vantagens e os inconvenientes de cada um desses possíveis e, desse modo, uma representação deles. E como estes conhecimentos são relativos ao sujeito, às informações que ele recebeu, às experiências que ele viveu e aos valores que ele lhes atribuiu, podemos dizer que a racionalidade está ligada às ‘crenças’”.[5]

Não há racionalidade, mas racionalidades. Tudo depende da experiência, de como o mundo é apresentado para cada um. Uma escolha racional para um pode ser irracional para outro. Escolher apenas o que o sistema financeiro oferece como opção para crescer não é escolher, não é liberdade. Trata-se de um totalitarismo neoliberal.

O liberalismo sempre irá gerar pobreza e desigualdade. As crises são a natureza do liberalismo. Isso porque ele não aceita a diversidade. Não existe racionalidades para o liberalismo. É uma ditadura fascista. Um sistema que nos obriga a pensar, a ser, a falar o que é imposto. Saber falar para conseguir um número grande de adeptos, nada tem que ver com racionalidade, mas com manipulação. Uma manipulação que capta o que as pessoas sentem.

O liberalismo nunca deu certo e nunca dará. Ele é fruto de uma utopia mal-estruturada baseada no que o ser humano nunca foi: racional.


[1] BUCCI, E. A superindústria do imaginário. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 83.

[2]Karl Marx e Friedrich Engels, Manifesto do Partido Comunista, Martin Claret, São Paulo, 2006, p. 48.

[3] DAMÁSIO, A. A estranha ordem das coisas. São Paulo: Cia das Letras, 2018, p. 13.

[4] NAGY, P. A emoção na Idade Média: um período de razão. In: CORBIN, A., COURTINE, J-J. e VIGARELLO, G. (Dirs.) História das emoções. Petrópolis, RJ: Vozes, 2020, p. 171.

[5] CHARAUDEAU, P. “A patemização na televisão como estratégia de autenticidade”. In: MACHADO, I. L. e MENDES, E. (orgs.). As Emoções no Discurso. Vol. 2. Trad: Emília Mendes. Campinas: Mercado das Letras, 2010. p. 28.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.