Pandemia mundial e a estética do confinamento – Por Filippo Pitanga

2020 mudou todos nós... É contraditório pensar que na era das redes sociais, quando nunca estivemos tão conectados, para além de (quase) quaisquer fronteiras, tenhamos sido quarentenados fisicamente dentro de nossas casas

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2020 mudou a todos nós... É até contraditório de se pensar que na era da informática e das redes sociais, quando nunca antes pudemos estar mais conectados, pra além de (quase) quaisquer fronteiras, tenhamos sido quarentenados fisicamente dentro de nossas próprias casas por uma pandemia global. Isso porque o comportamento social diante da virtualização massiva já vinha ficando cada vez mais sedentário e ocioso desde antes da covid-19, e talvez não déssemos o devido valor até pensarmos que realmente poderíamos perder a nossa liberdade material. Mas o que isso significaria? E quais as conseqüências psicológicas a que esse dilema acarretará?

Vamos tentar corresponder a estas questões através do acervo de imagens que, de forma a antever o futuro, já lidava com a estética do confinamento, num dos maiores construtores de imaginário social que existe: o cinema. Iremos cruzar análises de dois cineastas bastante notórios por criar e desenvolver uma estética de “filmes de apartamento”, cada qual à sua maneira bem peculiar, porém, para nosso presente propósito, de forma ímpar e complementar. São eles o controverso franco-polonês Roman Polanski, além de uma pegada completamente diversa com a cineasta franco-belga Chantal Akerman.

Há de se começar fazendo a diferença primeiramente entre confinamento e prisão, pois, apesar de muita gente dizer se sentir aprisionada dentro de casa, devemos tomar ciência de que é algo bastante diferente ser confinado por vontade própria ou como penitência. Um exemplo visual, apenas para conseguir se mentalizar a diferença, está na famosa pintura “Rodada dos Prisioneiros” de Vincent Van Gogh, de 1890, após ter sido detido num hospital psiquiátrico por um período de colapso mental. Esta cena já foi utilizada até pelo cinema, com um círculo de pessoas rodando em torno de si mesmas, vigiadas externamente, onde nenhuma ação passa despercebida, como materializada no filme “Laranja Mecânica” de Stanley Kubrick (1971). Apesar de este exemplo começar pelo surto psicológico, de dentro pra fora, acaba se tornando uma detenção de fora pra dentro, pois a pessoa é internada contra a sua vontade por ter saído do padrão comportamental esperado.

As intenções são completamente diferentes, pois mesmo que a pandemia seja extremamente perigosa e já tenha ultrapassado recordes de perdas ao redor do mundo, as pessoas ainda têm o direito de ir e vir. A autonomia de si subsistiu, seja para fazer compras ou trabalhos essenciais, seja aglomerando em desrespeito aos protocolos mínimos de segurança, o que pode acarretar conseqüências para seus atos, como multa ou ser contaminado e poder vir a óbito.

Já o confinamento voluntário é algo completamente diverso.  É solidário, inclusive, almejando diminuir os riscos de contaminação em massa. Restringe o número de pessoas nas ruas e, portanto, nos prontos-socorros lotados. Porém, como isso acarreta repercussões para a cabeça das pessoas? Até porque, se antes da pandemia debatíamos uma sociedade de controle, que vigiava para punir, como num panóptico cercado de câmeras de vigilância (nas palavras do pensador Michel Foucault), hoje somos nós mesmos quem nos expomos deliberadamente na internet, para sonhar acordado ou evadir das restrições de liberdade material.

Curiosamente, é válido começar esta reflexão sobre o confinamento voluntário com um pequeno paradoxo: Quanto mais as pessoas se sentem tolhidas de suas liberdades no mundo exterior, mais o mecanismo de fuga se volta para o mundo interior. Quanto menos possibilidades externas de realização, mais escape para o delírio. A questão é justamente a infinitude desta internalização, pois, uma vez que se abram as porteiras da imensidão do subconsciente, mais inversamente proporcional é a prisão da pessoa confinada.

Eis onde começa a estética dos filmes de Roman Polanski, que desde cedo entendeu isso em seus filmes, especialmente quando começou sua carreira em língua inglesa. Nascido na França e de origem polonesa, sua família sofreu os horrores do holocausto, e ele próprio teve de passar pelos traumas legados pela perda de sua mãe. Ninguém que tenha passado por isso conseguiu ficar incólume. É como se a perda permanecesse junto com as pessoas, independente de para onde elas fossem, onde se fixassem, pois o assombro da dor e da atrocidade histórica cometida atravessava o espaço e tempo, dentro do subconsciente coletivo. – Ou seja, o espaço limitado dos apartamentos era metáfora para a projeção de fantasmas internos muito mais resistentes do que qualquer inimigo material.

No primeiro filme de sua chamada trilogia de apartamento, “Repulsa ao Sexo” (1965), acompanhamos a personagem de Catherine Deneuve passando por crises de pânico e agorafobia. Ela se sente perseguida dentro de seu lar de tal modo que a casa começa a ganhar vida, com dispositivos visuais emprestados de clássicos como “A Bela e a Fera” de Jean Cocteau (1946): Vide castiçais nas paredes que eram segurados por braços humanos de verdade saindo por buracos, e humanizando o inanimado do castelo assustador da Fera (algo que influenciaria até a animação da Disney décadas depois, em 1991). Já no filme de Polanski, vemos mãos que saem dos corredores estreitos entre os cômodos para tentar agarrar a protagonista interpretada por Deneuve.

A grande questão é que estas representações de transfiguração da casa não querem dizer outra coisa senão metáforas da opressão ao feminino, às mulheres, e à diferenciação e individuação ante o ordenamento patriarcal. Os temores da personagem são completamente justificáveis sob uma análise do período histórico onde se situa, em meados dos anos 60, quando a humanidade estaria saindo da extrema repressão de direitos anterior e ainda pregressa à emancipação da revolução de 68 e da segunda onda do feminismo na década de 70. Algo que pode dizer muito do que estamos vivendo hoje, de forma cíclica, em governos crescentemente entregues ao conservadorismo.

Polanski continuou a trabalhar essa estética no segundo filme da trilogia, que talvez seja um de seus maiores clássicos na carreira, “O Bebê de Rosemary” (1968), com um passo a mais. Se antes o gênero cinematográfico atravessava o horror psicológico, podendo não passar de imaginação, agora ele abraçaria de vez o sobrenatural, e trataria do famoso descendente do Capiroto, a prole do diabo. Na verdade, esta analogia estava muito mais relacionada à organização dos podres poderes, os mesmos que regem os bastidores da vida, como se tratasse de uma seita satânica (não pela motivação, e sim pelo modus operandi). Se você não faz parte da seita, não pertence a nada neste mundo – um sentimento de isolamento que muitos sentem nesta quarentena, como se a ultra exposição em redes sociais fosse um pacto com o demo, numa vida eternamente indevassada, como um Prometeu acorrentado tendo suas entranhas exibidas numa vitrine, num banquete público.

Porém, esta opressão não é igual para todos, é desproporcional e injusta, pois pesa a mão muito mais em recortes identitários específicos, como de gênero, raça, classe e sexualidade. É por isso que o pacto com o sobrenatural no filme contrapõe marido e mulher, interpretados por John Cassavetes e Mia Farrow, respectivamente, colocando a esposa numa posição inicialmente vulnerável. Mesmo que ela tenha a potência de ser reverenciada pelo poder de gestar e parir o objeto desejado por tantos, ainda assim isto é usado contra ela, pois o capital coopta a capacidade de gerar mão-de-obra para a sociedade, de modo a verter até o poder familiar em produto na contemporaneidade. A beleza inerente à maternidade é usurpada diante do consumismo e mecanização dos indivíduos, como engrenagem do triturador de gente.

Por outro lado, o terceiro filme do diretor neste sentido, “O Inquilino” (1976), foi o único contado a partir do ponto de vista de protagonista masculino, interpretado pelo próprio Polanski. Isso é bastante curioso e irônico, já que dois anos antes a carreira do diretor ficaria marcada para sempre por um caso de abuso de menor – algo que ostenta até hoje com uma condenação judicial que o impede de pisar nos EUA, ou países que tenham acordo de Tratado Internacional de deportação, pois senão ele pode ser preso como cumprimento da pena pela qual foi sentenciado.

Ainda assim, existe um princípio do contraditório ali dentro mesmo do filme, pois, da mesma forma que o anterior, o apartamento estava já marcado pelo trauma de quem havia morrido anteriormente ali, em ambos os casos, mulheres. Confinamentos que carregam suas vidas passadas, liberando seus fantasmas, e que irão cobrar a responsabilidade pelos malfeitos cometidos contra elas. Em outras palavras, quanto mais confinado, maior o delírio, maior a possibilidade de confrontação do passado e tentativa de superação.

Eis que a condição feminina acossada pelos ditames sociais na metáfora de seus apartamentos também foi utilizada por outra mestra da sétima arte, a saudosa Chantal Akerman, porém com a representatividade e lugar de fala que faltavam a Polanski. E, ao invés de utilizar de linguagens como os gêneros cinematográficos, do horror ao fantástico e o sobrenatural, ela utilizou de outros dispositivos para nos fazer refletir sobre essa condição. Especialmente através da virtualização, tão presente na atualidade... Isto porque, mesmo antes de existir recurso de celulares, internet e selfie, ela já trabalhava através de ensaios bastante pessoais e intimistas, muitas vezes virando a câmera para si, ou se inserindo no que filmava dentro de sua própria casa – entre o documental e a ficcionalização.

Vamos começar por seu cinema de ficção, como seus primeiros curtas-metragens, “Saute ma ville” (1968) e “La chambre” (1971), onde já criava mecanismos de condicionamento do olhar a partir de quatro paredes confinantes. Era com o paradoxo entre tempo e espaço que ela provocava a reflexão do espectador para quebrar o aprisionamento que toda câmera dá ao quadro, como molduras confinantes a limitar nosso campo de visão – o que impediria a platéia de ver o que bem desejasse, e não apenas o recorte filmado.

No primeiro caso (1968), Akerman começa o filme com imagens da cidade, mas só para disfarçar, pois em poucos minutos insere uma personagem feminina restringida numa cozinha claustrofóbica. As formas com que ela irá desconstruir e implodir esse espaço estão todas no ritmo da montagem, que alterna entre a sensação de que está presa ali desde sempre, ao mesmo tempo em que irá avacalhar as formas e expectativas do que poderia ser feito ali. A subversão dos códigos e signos escapam aos sentidos originais, fazendo com que não lhe subjuguem mais.

Da mesma forma, no curta-metragem seguinte (1971), o dispositivo agora era filmar o mesmo cômodo, porém passeando com a câmera de forma giratória, de modo que a cada passada o que veríamos nos cantos do quarto seria ligeiramente diferente... Ou será? Seria apenas um truque de percepção? Ou ela estaria nos vencendo no cansaço? E a exaustão do olhar, perante a rotina da câmera no ambiente confinado, não poderia gerar outra conseqüência senão a vertigem? Afora da realidade nua e crua? Isso diz muito dos mesmos cantos que todos estamos encarando diariamente em nossas próprias casas durante a pandemia, a descobrir novas coisas no apartamento ou dentro de nós mesmos.

É nesse contexto criativo da estética de filmes de apartamento que Chantal lança o seu Cult absoluto, o longa-metragem “Jeanne Dielman, 23, Quai Du Commerce, 1080 Bruxelles” (1975). Nomeada junto de seu endereço até mesmo no título, a protagonista interpretada por Delphine Seyrig já carrega o peso de sua casa nas costas antes mesmo de iniciar o primeiro minuto de projeção.

Num ritmo introspectivo, seguindo o tempo real das coisas, acompanhamos a personagem de início realizando afazeres comuns a uma dona de casa. Podemos vê-la descascar batatas, esperar a água ferver aos poucos, até que se alcance o ponto de cozimento pra servir na mesa ao filho, um dos únicos outros personagens em cena de corpo presente. – Influência tão forte que sempre retorna no cinema, como pôde mostrar o mestre húngaro Béla Tarr em seu “O Cavalo de Turim” (2011), codirigido com sua esposa Ágnes Hranitzky.

Porém, Jeanne Dielman reserva um segredo que tenderia a escandalizar a sociedade daquela época, sobre o qual não precisamos dar spoiler aqui. Basta dizer que a câmera não sai desta residência em nenhum momento, apenas abarcando a existência dos poucos homens que adentram aquela casa, representando um sistema social ali representado por outros tipos de relação opressora e aterrorizantes. Os únicos sinais externos aparecem por luzes da rua ou ruídos ambientes que transbordam pelas janelas do apartamento. Vide, por exemplo, a voz da própria Chantal Akerman, interpretando uma das vizinhas que não chega a aparecer fisicamente, mas fala com a personagem através das barreiras do filme – algo com o que podemos nos identificar hoje na pandemia com o distanciamento social.

Por outro lado, se a voz da diretora já aparecia mesmo num de seus exemplares de ficção, é nos documentários que ela irá trabalhar a estética de apartamento de forma ainda mais ensaística, colocando a si própria e suas vivências como perspectivas referenciais de linguagem, não apenas de personagem ficcional como Polanski.

Akerman já havia adentrado de vez a narrativa real em filmes como “Notícias de Casa” (1977), retratando o período que morou em Nova Iorque com imagens para além de sua janela, de diferentes pontos da cidade, e narrando no extracampo as cartas que lê de sua mãe, enviadas lá da Bélgica. Esse encontro etéreo de lugares, a partir de signos como a leitura de cartas de outro continente, dando uma liberdade para além do trânsito em distâncias diferentes, constrói uma real catarse e identificação para além do espaço e do tempo. E consegue até reocupar e se reapropriar do imaginário da cidade de NY, estranha e estrangeira para ela.

Tais contrastes e tensões entre imagem e camadas de fora do quadro, e como sua narração pode romper a concretude dos planos, decerto transformam as cartas numa das formas de liberdade muito similares às nossas redes sociais de hoje, em conversas, curtidas e postagens públicas – onde um ato jamais está isolado no mundo, mesmo que você apenas veja uma faceta dele no local em que foi gerado.

Por fim, mas não menos importante, o derradeiro trabalho de Akerman lançado logo antes de falecer em 2015 foi “Não é um Filme Caseiro”, talvez o seu mais confessional e intimista. Nele, retoma o estudo sobre sua mãe como personagem, colocando-a em cena, e contracenando com ela como num reality show, cercadas de câmeras até esquecermos que estariam lá filmando. Para além disso, usa de dispositivos modernos para dialogar com diversas distâncias online, como o skype, de modo a criar paralelos entre a sua pessoa e a busca de ecos na identidade de sua mãe.

Ela faz isso desde os pequenos gestos do dia a dia, que poderiam passar despercebidos, até colocar frente a frente a dicotomia entre hereditariedade e influência do meio, demonstrando que seus hábitos e diferenças são construídos socialmente. Afinal, que forma mais brilhante de entender sua condição existencial e redescobrir a si e à sua mãe do que ficando confinada com ela? Uma diretora de cinema exercendo a sua representatividade do lugar de fala da própria família, em perscrutar de forma investigativa seu universo interior. Criadora e criatura. Filme e vida real. Confinamento e emancipação. Quarentena do corpo e liberdade da alma.

Ou seja, independente da vontade de evadir, de fugir para os recônditos mais inexplorados do planeta, precisamos primeiro dar conta da experiência que foi ter um ano quarentenado em nossas vidas. Precisamos lidar com a produção de ansiedades e angústias que ficaram confinados junto conosco, e que não irão se dissipar tão facilmente assim... E isso quer dizer mirar cada vez mais para dentro de nossos confinamentos, através de mil janelas, não do celular ou do computador, mas sim os seus ecos em nosso subconsciente delirante, reinventando sob outros prismas nossos próprios mundos.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.