Será que eu preciso proteger meus dados? Mas eu não tenho nada a esconder! - Por Deivi Lopes Kuhn

Um dos argumentos recorrentes das pessoas que expõem sua vida privada nas redes sociais é que não têm nada a esconder. Será que isso é verdade? Vamos acompanhar uma história que está cada vez mais real.

Foto: Criative Commons
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Estamos em 2040, em Salvador. Ana, aproveitando o início da sua aposentadoria aos 85 anos[1], chegou na casa de sua amiga Maria. Elas fazem parte de uma organização que há 30 anos divulga as vantagens dos alimentos orgânicos. Infelizmente esses produtos têm se tornado cada vez mais raros.

- Oi Maria! Presente para você!

- Ana, que delícia, Lichia! Obrigado, chegou na hora certa! meus netos Enzo e Valentina[2] estão aqui neste final de semana. Quem sabe eu convenço eles a comerem algo saudável.

- Eles continuam com aquele problema sério de peso?

- Sim, estão quase em obesidade mórbida, mesmo com 10 e 12 anos. Não sabemos mais o que fazer. Isso me deixa muito triste. Bom, mudando de assunto, vou tirar uma foto das frutas e postar aqui na minha rede social.

- Tira isso de perto de mim, não quero eles escutando o que eu falo. Não adianta me dizer que precisamos estar online para divulgar nossa causa, não devemos compartilhar nossa vida pessoal!

- Ana, tu sabe que eu não tenho nada a esconder!

Maria e Ana divulgam as consequências do consumo de alimentos super processados e dos transgênicos, que se popularizaram quando as empresas de saúde passaram a controlar a produção de sementes e agrotóxicos[3]. Até porque a alteração genética é realizada apenas para a planta resistir melhor a venenos cancerígenos.

Os algoritmos da rede social escutaram e processaram a conversa. A corporação recebeu bilhões para aumentar as vendas do novo cookie[4] recheado da maior indústria do mundo. Como os pais de Enzo e Valentina não usam rede social, a maior parte dos dados utilizados para analisar a primeira infância deles, e que são utilizados para criar gatilhos psicológicos, foram obtidas do perfil da avó Maria. Para eles gostarem do cookie, o algoritmo relacionou cenas em que a família estava feliz na infância com a marca. Fácil.

Mas uma nova ação era necessária. A conversa gravada e processada pelo algoritmo detectou um risco.  Analisando o banco de dados de notas fiscais brasileiras que está no ambiente de nuvem de uma corporação parceira[5], o algoritmo verificou que o consumo de lichia diminui as vendas do seu cliente. Imediatamente o algoritmo passa a associar a fruta à momentos tristes, principalmente o velório do avô. Ao mesmo tempo procura mostrar conteúdos que deixam as crianças irritadas, propensas a comer mais doce industrializado.

- Enzo, Valentina, Essa é a Ana, olha o que ela trouxe para nós?

- Tá, vó, estou vendo vídeo, traz um cookie para nós?

- Melhor, vamos comer a lichia!

- Não, vó, eu não gosto de lichia. Então, não vou comer nada!

Maria e Ana se retiram.

- Que triste, Maria, lutamos tanto por alimentos saudáveis e nem a nossa família muda.

- Estou revoltada. Vou agora mesmo postar na minha rede social os prejuízos de comer um doce desses em comparação a comer uma fruta.

A nova postagem foi direcionada apenas para quem não consome cookies. Foi como se ela nunca tivesse existido, a não ser para o algoritmo, que confirmou o sucesso da sua estratégia, que a partir de agora será adotada em outras situações.

E a Maria? Bom, ela recebeu imediatamente uma propaganda de cirurgia bariátrica para crianças. Mais um anunciante feliz!

O que seria da eficiência do Capitalismo de Vigilância sem essas Marias, Pedros, Joãos e outros que acham que podem mudar o mundo em uma rede social? Afinal, nós temos algo a esconder?


[1]      Os neoliberais continuaram sua prática de postergar a aposentadoria sempre que possível em nome de um dito “equilíbrio da previdência” que na verdade nunca fez sentido. Em uma sociedade justa os idosos são responsabilidade de todos.

[2]      https://www.youtube.com/watch?v=dJ_c7laHqzY

[3]      https://revistaforum.com.br/?s=transg%C3%AAnicos++monsanto

[4]      Nem bolacha nem biscoito.

[5]      O SERPRO e a Dataprev foram privatizadas e os dados dos cidadãos brasileiros entregues ao interesse privado. Para saber mais: .

Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.