Resistência: Cinemateca Brasileira e Olhar Periférico – Por Filippo Pitanga

Como o incêndio da Cinemateca diz muito sobre o descaso das políticas públicas na preservação e memória do cinema e como Festivais recentes do naipe do Olhar Periférico podem democratizar ainda mais o acesso descentralizado

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Diante dos trágicos eventos que puderam ser vistos recentemente, mesmo que não se tenha acendido um fósforo sequer para incendiar a Cinemateca Brasileira (e esta possibilidade ainda não foi completamente descartada), a negligência denunciada aos quatro ventos já era tão criminosa quanto qualquer ato incendiário intencional. A falta de infraestrutura foi tão inventariada quanto avisada dos perigos que poderiam acontecer e, mesmo assim, o governo não fez nada para proteger o patrimônio cultural dos registros audiovisuais da história de nosso país.

Cada filme significa um momento, uma lembrança, um acontecimento ou mesmo olhares plurais de vivências espelhadas pelas câmeras da sétima arte através da mudança dos tempos que se sucederam na trajetória do cinema. Não são apenas pedaços de entretenimento, e sim a própria forma como a sociedade reflete sobre sua existência nos diferentes períodos e épocas.

Para evitar que outras perdas colossais como esta venham a acontecer, precisamos estar atentos e demandar de forma mais incisiva. O povo brasileiro precisa se preocupar mais com sua arte, como se fosse sua segunda pele, como se as chamas consumissem nossa própria carne... E não só material, e sim também imaterial, etérea e mental, pois nosso inconsciente coletivo permanece vivo através dos filmes.

Uma das formas de preservar a memória é democratizar o acesso a cada vez mais territórios, de modo a descentralizar os eixos hegemônicos de outrora. Se a população inteira não se importar com estas obras como se fossem suas, jamais poderá demandar proteção como se fosse por sua própria vida. E um Festival que começou esta semana, de 02 a 15 de agosto, na plataforma online Cultura em Casa (clique aqui), é o Olhar Periférico, mais uma empreitada que ajuda a trazer à tona produções realizadas fora de eixos hegemônicos! Uma ampliação do circuito comercial para a grande população que outrora não teria o mesmo acesso, já que algumas cidades no Brasil nem sala de cinema possuíam antes mesmo de a pandemia fechar muitas mais.

Um dos grandes diferenciais deste Festival tão necessário é justamente o de agrupar as principais obras que foram realizadas em territórios periféricos e por olhares plurais de forma contra-hegemônica. E tenta, ao mesmo tempo, auxiliar num estímulo de visibilidade para estas obras na mídia e para o público em geral, pois ser visto e debatido é o que toda obra almeja.

Foram mais de 500 filmes inscritos, 33 curtas-metragens selecionados ao todo em quatro Mostras competitivas, e mais 8 longas-metragens em Mostra hors-concours. As quatro Mostras de curtas possuem curadoria extremamente plural, como Olhar Feminino, focando em filmes dirigidos por mulheres e com temáticas representativas de gênero e interseccionalidades com raça e classe, selecionados pela curadora e cineasta Ana Paula Nogueira... Bem como a Olhar Diversidade, com curadoria de Jonathan Bao, a partir de filmes na frente e atrás das câmeras com pessoas não binárias em recortes LGBTQIA+ e linguagem queer.

E ainda temos a Mostra Olhar Jovem, de filmes feitos por estudantes, cineastas mirins e amadores, todos curados por Kamilla Medeiros, pesquisadora ativa como em Cineclubes e eventos com o famoso cinema histórico Dragão do Mar e escolas como Vila das Artes e Porto Iracema das Artes no Ceará. Como também, por fim, a Mostra Todos Olhares é a mais ampla, com profissionais de todos os nichos e idades, com curadoria do produtor Queops Negronski, parceiro também do Cinefantasy, outro festival produzido igualmente pela mesma fonte, a Fly Cow, já tendo sido curador da Mostra Black Power, com representatividade do cinema negro.

Já em relação aos oito filmes da Mostra Olhar Cult, a organização do Festival e a curadoria de longas-metragens preferiram trabalhar de modo diferente do trabalho com os curtas-metragens. Ao invés de uma seleção de inscrição aberta, foi priorizado reunir alguns dos maiores exemplares dos últimos anos que ajudaram a reocupar o imaginário afora dos habituais territórios de produção, que já costumam receber todos os investimentos públicos e as ferramentas de distribuição e exibição, com curadoria deste que vos escreve, Filippo Pitanga.

Por isso mesmo, já que se trata de uma categoria de longas-metragens que descentralizam e decolonizam um sistema hegemônico, ainda mais diante do atual desmantelamento de políticas públicas de investimento e patrocínio no cinema brasileiro, quiçá o realizado de forma periférica, nomeou-se a Mostra como Olhar Cult como um manifesto!

É uma declaração de que essas produções feitas fora dos eixos de sempre e por equipes plurais são sim possíveis, pois já deixam uma merecida marca digna de ser celebrada e pavimentada para os próximos que virão. E a edição que serve de gênese para o Olhar Periférico está homenageando todos aqueles que produzem diariamente na força da resistência e da guerrilha num mercado extremamente desigual, dando o exemplo para que muitos mais possam seguir esses passos e nas próximas edições talvez presenciar cenários menos injustos de produção nas políticas públicas brasileiras e tenham muitas mais possibilidades de produção e inscrição em nosso Festival.

O Olhar Cult é composto por sucessos de crítica e público que se distribuem por todas as regiões do Brasil e por vários estados e cidades do interior, de modo a representar a grande diversidade do país e de sua produção periférica, que talvez não alcançasse seu real potencial de público não fossem Festivais aguerridos como este que ora se acrescenta no cenário e de modo virtual para alcançar ainda mais pessoas com nossa arte de ponta.

Alguns dos elencados são de tempos diferentes e angariaram diversas premiações em diferentes Festivais, e será a primeira vez em que muitos estarão juntos numa só Mostra, para ver e rever um seguido do outro de acordo com suas potências individuais e conjuntas, de acordo com o desenho curatorial e temático que foi feito de suas essências com os curtas-metragens a serem exibidos nos dias correspondentes. Preparem-se para sessões transformadoras.

Conheçam um pouco mais sobre os filmes de longa-metragem:

02/08 às 19h – Mostra Todos os Olhares

02/08 às 20h - Mostra Cult - Amor Plástico e Barulho (disponível por 24 horas) de Renata Belo Pinheiro (PE). Sinopse: Shelly é uma jovem dançarina que tem o sonho de ser cantora de Brega. Ela parte em busca da fama, mas inserida em um mundo onde tudo é descartável, ela encontra dificuldades para atingi-la.

03/08 às 19h – Mostra Olhar Feminino

03/08 às 20h - Mostra Cult - Parque Oeste (disponível por 48h) de Fabiana Assis (GO). Sinopse: Depois de ser vítima de violência do Estado, em Goiânia, Brasil, uma mulher reconstrói sua vida, transformando seu luto em luta.

04/08 às 19h – Mostra Olhar Jovem

05/08 às 19h – Mostra Olhar Diversidade

05/08 às 20h - Mostra Cult - Café com Canela (disponível por 48h) de Ary Rosa e Glenda Nicácio (BA). Sinopse: Após perder o filho, Margarida vive isolada da sociedade. Ela se separa do marido Paulo e perde o contato com os amigos e pessoas próximas, até Violeta bater na sua porta. Trata-se de uma ex-aluna de Margarida, que assume a missão de devolver um pouco de luz àquela pessoa que havia sido importante para ela na juventude.

07/08 às 20h - Mostra Cult - Cidade de Deus, 10 anos Depois (disponível por 48h) de Cavi Borges e Luciano Vidigal (RJ). Sinopse: O que aconteceu com os atores do premiado filme "CIDADE DE DEUS" 10 anos depois?

09/08 às 20h - Mostra Cult - Os Pobres Diabos (disponível por 48h) de Rosemberg Cariry (CE). Sinopse: O Gran Circo Teatro Americano leva suas atrações ao sertão nordestino. Na cidade de Aracati, a trupe monta uma divertida peça sobre a crise no inferno. Com uma trama rocambolesca e inspirada na literatura de cordel, a atração mostra a chegada do bandido Lamparino ao inferno e como Lúcifer participa do capitalismo internacional. Enquanto isso, nos bastidores, amores e tragédias movimentam a vida dos artistas.

11/08 às 20h - Mostra Cult -Filme de Aborto (disponível por 48h) de Aborto de Lincoln Péricles (SP). Sinopse: Proletária e proletário refletem sobre seus trabalhos e lidam com uma impossível gravidez.

13/08 às 20h - Mostra Cult - Branco Sai, Preto Fica (disponível por 48h) de Adirley Queirós (DF). Sinopse: Tiros em um baile de black music na periferia de Brasília ferem dois homens,que ficam marcados para sempre. Um terceiro vem do futuro para investigar o acontecido e provar que a culpa é da sociedade repressiva.

14/08 às 20h - Mostra Cult - Ela Volta na Quinta (disponível por 24h) de André Novais (MG). Sinopse: Uma crise na relação de um casal de idosos afeta a rotina dos filhos. A família representada no filme é verdadeira, formada pelos pais e pelo irmão do diretor André Novais, que também atua.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.