Sob a regência de Júlio Medaglia... E viva Chico Buarque! - Por Mouzar Benedito

Em seu blog, Mouzar Benedito relembra o "Quinteto do Couro da Geografia" da USP e comenta a polêmica em torno da música de Chico Buarque

Foto: Reprodução
Escrito en OPINIÃO el

Uma crônica que escrevi há anos, nunca publiquei porque achava que o maestro Júlio Medaglia poderia não gostar. Na semana passada, conversando com a Célia, minha companheira, falei sobre este texto e ela disse: “Acho que ele vai é gostar”. Júlio Medaglia, além de grande maestro é grande pessoa.

Resolvi publicar, atualizando. E aí apareceu mais uma novidade para reforçar esta decisão: o anúncio de que Chico Buarque não cantaria nunca mais a música Com açúcar, com afeto, porque algumas feministas a consideram machista!

Fiquei espantado e resolvi incorporar algo mais. Idiotice da direita não me espanta, mas vejo de vez em quando gente “do nosso lado” achando que atitudes intolerantes, procurar pelo em ovo, significam ser de esquerda. E às vezes parece haver falta de compreensão do sentido das coisas. Bom... Mas isso está lá no final, se alguém tiver paciência pra ler.

Batucada clássica

Um dia, lá por 1970, apareceu no prédio de Geografia e História da USP o maestro Júlio Medaglia, e foi direto ao Centrinho de Geografia (o nosso centro acadêmico), dizendo que queria gravar um programa especial para a TV Cultura, com o Quarteto de Cordas de São Paulo tocando música clássica em frente a uma das rampas do prédio. Pediu nosso apoio e, claro, topamos. Mas quando ele disse que a gravação seria no final da tarde de sexta-feira, chiamos:

— Nesse dia a gente tinha programado uma batucada aqui.       

Como em outras sextas-feiras, tínhamos mesmo, mas não criaríamos caso, só “jogamos um verde” para ver se daria certo. Interromperíamos qualquer coisa para ver tal espetáculo.

Ele quis saber quem faria essa batucada e inventamos um nome na hora: Quinteto de Couro da Geografia.

Tínhamos um surdo, um atabaque, dois tamborins e uma caixa, daí o “quinteto”. O “de Couro” era uma brincadeira inventada na hora, imitando o “Quarteto de Cordas”. Ele se animou e propôs que a gente entrasse no concerto do quarteto de cordas e depois podíamos continuar com a nossa batucada noite adentro.

Era justamente isso que imaginávamos, e inventamos isso de falar da dificuldade daquele horário.

Bom, deu certo. Só tinha que fazer um pequeno ensaio antes. Essa foi a parte mais difícil, porque o nosso quinteto era formado por quem pegasse os instrumentos na hora. Mas acabamos selecionando cinco pessoas pra tocar. Não me lembro quem. Eu, com certeza, não estava entre elas, pois sou ruim nisso.

Durante a semana esparramamos cartazes escritos com pincel atômico (acredito que Júlio Medaglia não chegou a ver):

ATENÇÃO... SEXTA-FEIRA 18H

MAESTRO JÚLIO MEDAGLIA

REGENDO O QUINTETO DE COURO

E O QUARTETO DE CORDAS

Músicas de Mouzar (assim mesmo);

Brahms (Serginho Brahma); Bach...tazar.

Apoteose com a FUGA PARA O WC

No dia, o Quarteto de Cordas começou a tocar sozinho, diante de uma multidão de estudantes, uma maravilha. Todos babávamos ouvindo. E a última música teve a participação dos nossos batuqueiros.

Quando o programa foi ao ar, saiu uma crítica de meia página no Jornal da Tarde, na época muito bom ? acho que o melhor e mais respeitado ? na cobertura de atividades culturais. O crítico derramou elogios, disse que foi o melhor programa da TV brasileira nos últimos tempos e que atingiu o auge quando entrou o Quinteto de Couro da USP ? deixou de ser só “da Geografia” ?, formado por estudantes etc. etc.

Rimos bastante. Nosso grupo improvisado ser regido por Júlio Medaglia já era demais. Merecer uma crítica tão elogiosa, vixe!

Os grandes arranjadores

Há muito, sem ser músico, valorizo muito os arranjos musicais. Um bom arranjo valoriza muito uma música. Pense, por exemplo no Tropicalismo, movimento musical que durou pouco mas foi dos mais importantes do Brasil.

Afora a genialidade dos compositores e letristas, como Gil, Tom Zé, Caetano, Torquato Neto e muitos outros, e a qualidade dos intérpretes (além dos próprios compositores, Betânia, Gal, Os Mutantes etc.), cada música tinha um arranjo monumental, de grandes maestros como Rogério Duprat e Júlio Medaglia. Quem nunca ouviu ou nunca reparou, que ouça e repare.

O Quinteto de Couro

Como já contei, inventamos esse nome, Quinteto de Couro, na hora, porque tínhamos cinco instrumentos de percussão. Sim... era de quem pegasse primeiro, o direito de tocar até repassar a outro interessado. E aconteciam episódios divertidos.

O grupo era “da Geografia”, mas tinha gente de outros cursos também, que se juntavam a nós, no “nosso” prédio. No surdo, por exemplo, dois vindos de outros cursos eram os mais frequentes batuqueiros: o Claudião, da História, e o Ossamu, da Física.

Uma vez, fomos batucar no Bar da Tia Rosa, entrada da Cidade Universitária, e apareceu um negro alto, pinta de sambista, e disse que queria se incorporar ao grupo. Com a pose que tinha, falamos: “Pô, cara. Escolhe o instrumento que quiser”. Ele escolheu o surdo, que estava com o Ossamu.

Pedimos desculpa ao Ossamu e entregamos o surdo ao cara. Depois de poucos minutos, tomamos o surdo de volta e entregamos ao Ossamu: “Pô, cara! Com essa pinta toda, na hora de batucar você é um sueco no samba. O Ossamu, japonês, é muito melhor”.

Nossas músicas preferidas

Aproveito para lembrar das músicas que mais tocávamos e cantávamos, pensando: quem ouviu essas músicas pode gostar de universitário sertanejo ou outras tranqueiras que nos ofendem os ouvidos?

As batucadas duravam horas. Qualquer pessoa podia puxar um samba (ou outro gênero), que todo mundo cantava junto.

Noel Rosa e Ataulfo Alves, estavam entre nossos compositores preferidos, com ou sem parceiros, como João de Barros, Heitor dos Prazeres, Vadico, Mário Lago... E não faltavam nunca músicas de Assis Valente, Nássara... Do Pixinguinha, Nelson Cavaquinho e Cartola, gostávamos demais, também, mas para ouvir, não para cantar batucando.

Chico Buarque era um caso à parte. Além de autor de belíssimas músicas, ele era como um alter ego de todos nós. Parecia que cada música que ele conseguia “enganar” a censura, era nossa. Era minha, era de cada uma das minhas amigas, de cada um dos meus amigos. Então cantar suas músicas era uma catarse, um modo de aguentar os tempos duros e mostrar que a gente não desistiu de um mundo melhor, um Brasil muito melhor. Era uma forma de resistir!

As amigas, então, tinham um algo mais em relação a ele: entendia a “alma feminina”. Suas músicas compostas no feminino eram emocionantes para nós e muito mais para elas. Sentiam-se representadas.

Agora volto ao começo: ora, Com açúcar, com afeto era uma dessas músicas. Segundo consta, Nara Leão pediu a ele uma música que falasse de uma mulher sofredora etc. E ele fez, com a competência de sempre. Não significa que ele concordasse com aquela coisa do mau marido, aproveitador, que explorava emocionalmente a mulher. Contava uma situação. Muitas mulheres se identificavam com ela e, quem sabe, algumas ou muitas talvez possam ter passado a pensar nisso. Sei que nunca ouvi, na época, nenhuma mulher reclamar. E convivia com feministas. Não havia ainda, aqui, um movimento feminista forte, mas havia feministas de verdade. Pode ser que nem todas fossem fãs do Chico, mas as que não foram, não conheci.

Agora, acompanhando uma prática que extrapolou da radicalização política e se espalhou por tudo quanto há, sente-se um policiamento besta, de procura de comportamentos e ditos que tornem execrável alguém que sempre se comportou com dignidade. Só faltava essa, uma censura contra o “machismo” do Chico Buarque! E não são nossos inimigos nem adversários que o tentaram calar antes, que estão fazendo isso. Lamentável, no mínimo! E para não parecer machista, o Chico diz que não cantará mais essa música, quase como a renegando. Não! Não e não!

Se ficar dando ouvidos a gente que não sabe reconhecer os inimigos, logo não cantará também Mulheres de Atenas, porque tem quem não entenderá a crítica que ela traz. E tem outras. Várias. Chico Buarque sabe colocar-se no lugar delas. Se corre o risco de ser chamado de machista porque certas mulheres (não acredito que sejam “as feministas”, e sim “algumas feministas”) não o entendem, o problema não é dele.

Algumas preferências

Todo mundo cantava junto, homens, mulheres, pretos, brancos, orientais, jovens, adultos... Um(a) começava (“puxava”, no nosso linguajar) e todo mundo cantava. Mas alguns tinham suas preferências e sempre puxavam as mesmas músicas. Eu achava divertido. Quando alguma dessas pessoas sinalizava que era sua vez, eu já sabia o que viria.

A música “do” Heitor era Meu Romance, de Orlando Silva e J. Cascata: “Debaixo, daquela jaqueira, que fica lá no alto majestosa...”.

A Maria Gravina, mais nova da turma, cantava uma música do ano, do Paulinho da Viola: “Se um dia, meu coração for consultado, para saber se andou errado, será difícil negar...”.

O Osvaldinho começava sempre com uma de Sílvio Caldas, Carusinho e De Chocolat: “Na aldeia, oi, na aldeia... quero ver o seu vestido arrastando-se na areia...”

O Tripé emendava duas: “O arrependimento quando chega, faz chorar...” (de Cristóvão de Alencar e Sílvio Caldas) e “Você diz que eu choro escondido, ai ai meu Deus, que ingenuidade a sua. Se eu tivesse que chorar, chorava no meio da rua” (de Paulo Vanzolini).

Falando no Vanzolini, o outro sambista símbolo de São Paulo, Adoniran Barbosa, era o preferido do Baltazar: “Com a corda mi, do meu cavaquinho, fiz uma aliança pra ela, prova de carinho...”.

O Serginho Boca Seca (também conhecido como Serginho Brahma) lembrava sempre de uma de Geraldo Pereira: “Ai que samba bom, ai que coisa louca... Eu também tô aí, tô aí, quê que há... também tô nessa boca”.

E a Amélia?

Imagine se hoje em dia Ataulfo Alves e Mário Lago se metessem a compor a música Ai que saudade da Amélia! Comportamento submisso total... É isso que se espera de uma mulher? E seria isso que Mário Lago, comunista histórico queria de uma companheira?

Bom, se Com açúcar, com afeto incomoda algumas pessoas, Ai que saudade da Amélia deve ser motivo para execração total. Na época dessas batucadas já chamávamos de Amélia, não em tom elogioso, mas crítico, mulheres submissas. Mas cantávamos nas nossas batucadas e de vez em quando, para provocar, uma pessoa ficava encarregada de gritar POR CIMA depois de um verso, e POR BAIXO, depois o verso seguinte. Ficava assim:

Nunca vi fazer tanta exigência

POR BAIXO

Nem fazer o que você faz

POR CIMA

Você não sabe o que é consciência

POR BAIXO

Não vê que eu sou um pobre rapaz

POR CIMA

(...)

Tudo que você vê você quer

POR CIMA

Ai meu Deus que saudade da Amélia

POR BAIXO

Aquilo sim é que era mulher

POR CIMA

(...)

Amélia não tinha a menor vaidade

POR CIMA

Amélia é que era mulher de verdade

POR BAIXO

(...)

E quando me via contrariado

POR CIMA

Dizia, meu filho, o que se há de fazer?

POR BAIXO

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum