NEOLIBERALISMO

Somente a esquerda poderá salvar a família – Por Raphael Fagundes

A esquerda precisa urgentemente produzir um discurso sobre família. Não adianta posar com entidades religiosas ou escrever uma carta aos evangélicos

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A esquerda pode estar subestimando os votos das classes pobres em Bolsonaro. Mesmo o presidente relacionando a pobreza à criminalidade, afirmando que não há miséria no país e dizendo que é necessário que a polícia entre na favela matando, mesmo que inocentes morram, muitos, principalmente no Rio de Janeiro, ainda têm fidelidade ao ex-capitão.

Uma hipótese para explicar esse fenômeno pode ser o valor dado à família. A formação discursiva da esquerda não produz discursos contundentes sobre família.

Desde o “Manifesto”, Marx e Engels entendem que a ruína da família dos operários é a razão para o desenvolvimento da família burguesa. O que não é mentira já que, enquanto as famílias desestruturadas são as mais comums entre os trabalhadores, o Brasil é controlado por grandes famílias que se tornaram verdadeiras corporações, seja no ramo empresarial ou no ramo político.

E por que a família é um ponto importante a ser discutido na política?

O neoliberalismo defende a ideia de que não existe mais sociedade, apenas indivíduos. A família seria, portanto, o único refúgio neste mundo neoliberal. E, nesse sentido, os cristãos podem ser encarados “como promotores de uma racionalidade política neoconservadora bastante afinada com a lógica neoliberal”.[1]

Nos debates que ocorrem nas grandes emissoras de TV, vários temas são colocados para a discussão dos candidatos. Educação, saneamento básico, saúde etc, mas um tema que move grande parte da população brasileira ainda não é abordado: a família. A visão que os candidatos têm sobre a família se tornou pedra angular na decisão do eleitor. Em 2017, a pastora Damares Alves foi profética em relação às eleições de 2018 e as que viriam a partir dali: “O que vai decidir a eleição para presidente será a posição dos candidatos diante dos temas relacionados à vida e à família”.

Em uma sociedade em que o Estado busca cada vez mais se ausentar (proposta neoliberal), a família passa a ser fundamental. É uma lógica proposital. Com o esvaziamento das políticas sociais, as igrejas comunitárias acabam assumindo a dianteira, atendendo às necessidades imediatas dos mais vulneráveis (trabalho que sempre estiveram dispostas a fazer desde os tempos medievais).

As pautas sexuais petistas foram afastando os evangélicos cada vez mais da esquerda que, até então, se viam como minorias oprimidas pelo Estado e pela classe dominante católica. Bolsonaro entra neste vácuo.

Mas como um homem que teve três casamentos, que propôs o aborto de um filho, que disse que usava verba pública para “comer gente", tornou-se um grande defensor da família?

Uma estratégia política para ampliar os votos. Até então Bolsonaro era um político do nicho militar. Mas, com o tempo, observou o afastamento dos evangélicos da esquerda, principalmente a partir de 2011 com a questão do “kit gay". Em abril de 2017, o próprio Bolsonaro diz: “o kit gay foi uma catapulta na minha carreira política”.

A família passou a ser um grande instrumento para Bolsonaro ascender politicamente. Inclusive, a estratégia da disseminação de notícias falsas não seria possível se não fosse esse instrumento. É como explica o professor da UFRJ, Alexandre Brasil Fonseca: “A lógica de ‘defesa da família’ se dá por meio do uso de um aplicativo que tem no uso da família seu primeiro foco. Ser algo da confiança e segurança, espaço em que pessoas que se conhecem previamente e se comunicam de forma regular".[2] Portanto, não se trata de valorizar a família de fato, mas usar sua função social (em uma sociedade de Estado mínimo) para a cristalização do discurso conservador e liberal.

Em meio à crise do Covid-19, no ano de 2020, Bolsonaro esbraveja: “Devemos, sim, cada família cuidar dos mais idosos. Não pode deixar na conta do Estado”. Esse é o projeto neoliberal. Um Estado fraco e a responsabilização das famílias.

É importante lembrar que esse plano de Bolsonaro levou ao esfacelamento de muitas famílias. Irmãos se afastando devido a discordâncias ideológicas. Contudo, este aspecto não se refletiu com tanta força entre os mais vulneráveis. Até quando Bolsonaro diz que pretende beneficiar seus filhos, isso não soa como nepotismo ou privilégio para os mais pobres (muitos sem a figura de um pai presente), mas como a de um pai provedor (que eles não tiveram, remetendo-os a um passado retrotópico que valorizava a família).

Bolsonaro venceu em São Paulo e Rio de Janeiro. A maior parte das populações destas regiões são de pobres. Ou seja, não podemos subestimar o voto dos mais pobres em Bolsonaro. E isso está diretamente relacionado ao fato família, ausência de Estado, religião.

A esquerda precisa urgentemente produzir um discurso sobre família. Não adianta posar com entidades religiosas ou escrever uma carta aos evangélicos. As pessoas querem o discurso porque “se as ideologias têm uma ‘existência material', o discursivo será considerado como um de seus aspectos materiais".[3] O discurso é a materialização de uma ideia.

Mas a única forma de valorizar de fato as famílias, não instrumentalizá-las, é pela proposta da esquerda. Com o investimento do Estado nos serviços, fornecendo serviços gratuitos e de qualidade, os pais terão mais tempo para ficar com os seus filhos.

Os neoliberais não são contrários aos programas de auxílio de renda (como o Auxílio Brasil). O próprio Milton Friedman dizia que a “ajuda de forma mais útil para o indivíduo”, é o dinheiro.[4] Mas são arduamente contra os serviços públicos, ou melhor, contra o Estado de bem-estar social. O plano é o Estado mínimo, a privatização. Mas o auxílio só ampara até uma certa renda. Depois desta renda, seria preciso trabalhar intensamente para acessar saúde e educação de qualidade, pois, na lógica neoliberal, estas seriam pagas.

Quando os pais teriam tempo para ficar com os seus filhos? A lógica neoliberal afasta os pais dos filhos. Contudo, com saúde e educação gratuito e de qualidade se exigiria menos tempo dos pais fora de casa. Essa é a proposta da esquerda. Ou seja, somente o auxílio não resolve o problema da dissolução da família, muito menos um discurso vazio, ideológico, sustentado por valores bíblicos.

O desespero criado por essa lógica neoliberal, a correria para pagar as contas no final do mês, produz uma miríade de transtornos mentais. Mas o sistema promove o que Mark Fisher chamou de “privatização do estresse". O problema está no indivíduo, não na lógica do capital. Isso também contribui para que muitos se dirijam às igrejas. O estresse, a depressão e a ansiedade são encarados como “encosto" e a igreja irá libertar o cidadão desse mal.

No fim, Marx e Engels estavam certos: o esfacelamento da família dos trabalhadores alimenta a prosperidade das famílias das classes dominantes, dos pastores que ampliam sua demanda para qual vendem a libertação e a dos políticos neoconservadores, que coadunados com empresários ampliam seus negócios privados, enquanto que os pobres se desgastam para pagar pelos seus serviços.

 

[1] MACHADO, Maria das Dores Campos. A vertente evangélica do neoconservadorismo brasileiro. In: GUADALUPE, J L. e CARRANZA, B. (orgs.). Novo ativismo político no Brasil: os evangélicos do século XXI. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2020, p. 273.

[2]  FONSECA, A. Mídias, religiões e política no Brasil de Bolsonaro. In: GUADALUPE, J L. e CARRANZA, B. (orgs.). Novo ativismo político no Brasil: os evangélicos do século XXI. Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stiftung, 2020, p. 325.

[3] COURTINE, J-J. Análise do discurso político: o discurso comunista endereçado aos cristãos. São Paulo: EdUFSCar, 2014, p. 72.

[4] FRIEDMAN, M. Capitalismo e liberdade. São Paulo: Nova Cultura, 1988, p. 172.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum.