OPINIÃO

O Rio que Passa em Nossas Vidas – Por Luis Cosme Pinto

Os oitenta anos de Paulinho da Viola, um orgulho da Cultura Brasileira

Créditos: Divulgação
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O juiz apitou com força e esticou o dedo para o meio do campo. Era o fim de mais um jogo quente na cancha da Cedae, em São Cristóvão.

Com a camisa ainda suada, Paulo ouviu surpreso o convite do companheiro de time, o João.

- Fui promovido lá na empresa e preciso de novos projetos. Você tem alguma ideia?

João? João Araújo, que se tornaria grande executivo da indústria de discos e era pai de Cazuza.

A empresa? RGE, uma grande gravadora e sonho de muitos artistas.

Paulo? Paulinho da Viola.

Enquanto dirigia seu fusca de volta pra casa foi matutando. Matutou ainda mais na noite de insônia e na manhã seguinte...

- João. Tem um grupo de músicos aqui na Portela. É a Velha Guarda, os fundadores da escola.  Que tal fazer um disco com eles?

- Genial. Traz a turma aqui.

Nascia assim, no fim dos anos 1960, um disco histórico: Portela, Um Passado de Glórias. A novidade que João tanto queria nada tinha de moderna, brotava das raízes profundas de uma de nossas mais tradicionais escolas. Enfim, chegava a vez dos veteranos sambistas. Com o disco e seu imenso sucesso, surgiu o conceito da Velha Guarda Show, modelo seguido pelas rivais.

O Brasil passava a conhecer e a admirar Mijinha, Casquinha, Ventura, Aniceto, Manacéia, Alvaiade e muitos outros craques da Portela. Homens bastante humildes e artistas talentosíssimos que ajudaram a criar a supercampeã do bairro de Oswaldo Cruz. A Velha Guarda ganhou reconhecimento e viajou pelo mundo com samba de primeiríssima.

Aquele jovem Paulinho, que com o poder de observação dos visionários lançou seus padrinhos há mais de meio século, essa semana comemora oitenta anos.  Agora é ele o veterano.

Hoje, um nobre entre as majestades do samba, Paulinho vem de berço humilde. Foi até fácil escolher o nome do primeiro filho da enfermeira Paula, e do soldado César.

Paulo César Baptista de Farias, o Paulinho, é sambista nascido no choro. Quando saiu do quartel, César Farias, que também era funcionário público, pôde se dedicar mais ao conjunto Época de Ouro. Uma seleção de músicos excepcionais. O garoto Paulinho ouvia no sofá de casa os ensaios do pai com Pixinguinha e Jacob do Bandolim. Altamiro Carrilho passava por lá de vez em quando. Impossível não se apaixonar pela música diante de tanto talento.

Na adolescência, Paulinho pediu ao pai que ensinasse a ele a tocar violão, seu César indicou um amigo, o zelador de um prédio vizinho, no bairro de Botafogo. Podem acreditar, leitores e leitoras, o filho de um dos violonistas mais respeitados daqueles tempos teve como professor um porteiro. Zé Maria foi o mestre do artista que tem a Viola no nome. Alguém duvida que Zé Maria também era um bamba das cordas?

O biógrafo João Máximo conta no livro “Paulinho da Viola, Perfis do Rio” que o garoto sempre foi esperto e brincalhão, porém passava horas e horas sozinho fechado no quarto. Pensando e pensando. Silêncio absoluto.

Outro programa, também solitário, era vagar pelo cemitério do bairro. O menino olhava os jazigos, a arquitetura e as estátuas que enfeitavam os túmulos de mármore do São João Batista. Observar era com ele.

Mesmo quando já sabia tocar, Paulinho ia para as rodas com outro objetivo. O biógrafo esmiúça: “Nem desfilar nos blocos ou aprender novas músicas, será tão comovente, tão contagiante quanto observar o samba, ficar ali olhando as pessoas dançando e cantando, o movimento dos olhos, das cabeças, dezenas de bocas se abrindo em coro, a cantoria adquirindo um tom de expressão coletiva, todos ligados pela música. Como numa prece.”

João Máximo escreve que essa combinação de timidez, capacidade de observação e apreço pela solidão vão acompanhar Paulinho por toda a vida e desenhar o temperamento e a personalidade do artista.   

A serenidade do Paulinho pode ter sido muito útil diante de um dilema doméstico.  Ao mesmo tempo que encantava o filho com a magia dos instrumentos, o pai o aconselhava a escolher outra profissão, música dava muito trabalho e nenhum dinheiro. Contador ou economista, isso sim valia a pena, insistia seu César a sonhar com um filho doutor.

Obediente, o jovem seguiu o conselho e trabalhava num banco quando viu do outro lado do balcão Hermínio Belo de Carvalho, que desejava apenas pagar uma conta.

Se Paulinho ia menos ao samba, enfurnado no banco, o samba aparecia de surpresa, ali na boca do caixa. Mesmo retraído, ele não refugou. Chegou até o músico, na época também novato, e puxou conversa anunciando que era filho de César. Dias depois, os dois jovens já trocavam letras e melodias.

Tive a sorte de ver um dos últimos encontros de Paulinho com o pai. Um show no Circo Voador, na Lapa Carioca. Eram quase duas da manhã quando eles e a banda se despediram depois de muitos bis.

Em São Paulo, assisti Paulinho muitas e muitas vezes. Não esqueço daquela apresentação no Anhangabaú. No sábado de chuva miúda me protegi embaixo de uma lona já nas últimas músicas. Um homem negro de terno e sapato de verniz pediu para dividir o guarda-chuva improvisado. Sabia que eu o conhecia, mas não me lembrava de onde. Quando o show acabou, tentei realizar o desejo de qualquer fã, cumprimentar o ídolo. Não havia seguranças e fui entrando, ao meu lado o homem também caminhava. Quando a porta do camarim se abriu Paulinho mostrou o sorriso e falou mais alto que de costume.

-Zé Ketti, que alegria. Meu ídolo.

Depois do longo abraço, Paulinho me olhou, acreditando que eu podia ser amigo do criador de Máscara Negra e A Voz do Morro. Eu aproveitei a dúvida, estendi a mão e disse mais ou menos assim, “eu e seu Zé Ketti nos conhecemos agora no show. Tô muito feliz em te cumprimentar, Paulinho. Sucesso.” Só então larguei aquela mágica mão direita. Saí alegre e quase tropeçando nas próprias pernas e radiante por conhecer o ídolo do ídolo.

O encontro um tanto desencontrado me fez prestar ainda mais atenção em Paulinho. Um homem inteligentíssimo, dono de memória fabulosa e muito elegante em sua simplicidade. O fascínio do público que lota os shows não é só pelo compositor e instrumentista completo no esplendor de versos e melodia. Paulinho é autor de uma obra exuberante em sambas inesquecíveis, que o Brasil todo sabe cantar.

Há outra característica curiosa. Com ele, vascaíno apaixonado e espada na sinuca, o samba também é história de gente. Gente da favela e do bairro com seus dramas de amor, amizade, inveja, fracassos.  Um violeiro subindo o morro em busca da mulher amada, o jogo de cartas, um suicídio, o excesso da cangibrina, o pedido de fiado no mercado, tudo pode virar samba.  

Sublimes, personagens como o tintureiro Osvaldo, o seu Malaquias, o Zé Fuleiro, ganham vida.

Paulinho faz a gente dançar e se divertir com a arruaceira Luzia, que assustou a favela e foi dormir no xadrez, e se emocionar com a reconciliação de Santina e Antenor, depois de um terremoto chamado Sandrinha.

Têm as festas que torcemos pra não acabar, o esfuziante pagode do Vavá, a macarronada na casa do Chocolate, o abundante feijão da Vicentina e tantas outras estrepolias.

Uma vez perguntaram a Cartola quem seria o substituto dele. A resposta veio na hora.

- É Paulinho da Viola.

O que mais pode desejar um artista?

Nesse período de tão justas homenagens, desejo mais oitenta anos de alegrias a Paulinho, agradeço por tantos momentos felizes e pelo inesquecível aperto de mão. A Zé Ketti o muito obrigado pela preciosa e involuntária carona.

Viva o Samba!

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.