Alckmin e a espada de Dâmocles - Por Valerio Arcary

A espada de Dâmocles é um conto de referência sobre a insegurança, incerteza e intranquilidade do exercício do poder

Alckmin e Lula em seu primeiro encontro oficial, no jantar do Grupo Prerrogativas (Foto: Ricardo Stuckert)
Escrito en OPINIÃO el

 A humildade só é virtude quando não revela fraqueza                                   

                                    A aversão é para o coração, o que a prevenção é para o espírito.

                           A fortuna ajuda os atrevidos, mas também, muita vezes, os abandona.

                                                                                            Sabedoria popular portuguesa

A presença de Alckmin como candidato a vice-presidente em uma chapa liderada por Lula, interpretada como um gesto de reconciliação e humildade, nos convida a relembrar a história da espada de Dâmocles, imortalizada pelo autor latino Cícero.

Dâmocles era um palaciano na corte de Dionísio, de Siracusa, na Sicília. Ele defendia que Dionísio, como os grandes líderes, era um homem bem sucedido e feliz. Eis então que Dionísio propôs que Dâmocles ocupasse o seu lugar por um dia. Assim ele poderia viver, também, a experiência do poder. Mas, além do acesso ao consumo de luxo, Dionísio ordenou que uma espada fosse pendurada sobre o pescoço de Dâmocles, presa apenas por um fio de rabo de cavalo. Foi o bastante para que Dâmocles perdesse o interesse, e desistisse. A espada de Dâmocles é um conto de referência sobre a insegurança, incerteza e intranquilidade do exercício do poder.

Admitamos que é no mínimo controverso que Alckmin seja necessário para derrotar Bolsonaro. Não há somente aversão pessoal em círculos de esquerda. Mas, tudo bem, relevemos. O argumento mais forte daqueles que defendem esta “solução” não é eleitoral. O mais sólido é que Alckmin sinalizaria garantias para a classe dominante de que um governo liderado pelo PT e Lula não seria “vingativo”. Ao gerar uma benevolente expectativa, Alckmin permitiria, no mínimo, Lula ganhar algum tempo. A ideia é que a ousadia da aliança seria “funcional” para a governabilidade. Seria como um seguro de que não seria um governo engajado com um programa de reformas estruturais. E não haveria “revanchismo”.

Ao contrário, seria um governo comprometido com a pacificação dos conflitos sociais, contendo as pressões populares, depois de seis anos de perdas de direitos econômico-sociais. Seria, também, um governo de distenção das disputas políticas, depois do trauma do impeachment comandado por Eduardo Cunha, que levou Michel Temer á presidência, Lula para a prisão e a tragédia do mandato de Bolsonaro.

Mas, permanece um problema. O problema é que estas premissas infantilizam o debate. Não é preciso que um governo Lula seja “radical” para que uma fração burguesa decida ir para a oposição, e até tentar derrubá-lo. O governo Dilma não foi deslocado porque era “radical”. A moderação não é garantia de nada.

O dilema é que os conflitos sociais e políticos serão inescapáveis. O critério “oculto” que inspira o convite a Alckmin é que a fração mais poderosa da burguesia brasileira aprendeu as “lições” do golpe institucional de 2016.

Mas há, realmente, razões para acreditar que nunca mais farão algo semelhante, se considerarem não somente necessário, mas possível? Supostamente, o perigo de uma campanha de desestabilização de um governo Lula, mesmo que moderado e conciliador, não voltará a se colocar tão cedo no horizonte. Haveria um espaço comum de concertação: a defesa da democracia. A evidência esgrimida como prova seria o deslocamento para a oposição ao governo de extrema-direita depois da precipitação da tragédia da pandemia, e o papel das instituições, em especial dos Tribunais Superiores, de contenção das ambições bonapartistas de Bolsonaro.

Essa avaliação é insustentável em uma discussão séria. A aposta neste compromisso democrático de uma ala da burguesia brasileira é um erro estratégico. Depois de 2016, a ameaça de um possível golpe estará sempre presente.

Ninguém pode saber por antecipação, qual será a situação nacional nos próximos anos, além das imensas margens de incerteza da situação internacional. Qual será a taxa de desemprego e da inflação, ou a variação do salário médio? Qual será o ímpeto de uma oposição de massas de extrema-direita liderada pelo bolsonarismo? A dinâmica de recuperação da economia mundial irá se manter, ou não? Trump poderá disputar em condições de vitória as eleições presidenciais nos EUA em 2024?

Não fosse o bastante, a possível eleição de Lula não irá diminuir, tampouco, a expectativa, entre os trabalhadores e a juventude, o movimento de mulheres e populares, os negros, ambientalistas e LGBTQIA+, de que a vida irá mudar. Elas vão crescer. É razoável contar que um governo Lula terá cem dias, ou até mais, de bonança. Haverá, seguramente, um tempo de paciência, de esperar e de esperança, mas não, indefinidamente.  E mobilizações populares serão não somente justas, mas necessárias.

Então a imagem da “espada de Dâmocles” não é um cenário impensável. O que acontecerá quando, Lula sendo eleito com Alckmin como vice-presidente, alguns grupos capitalistas mais poderosos, como setores agro-negócio, se sentirem, mesmo que parcialmente, contrariados? Não poderiam ameaçar com um impeachment? Alguém pode apostar que existirá uma maioria na Câmara dos Deputados suficiente para impedir um desenlace como esse? E mesmo que fosse somente no terreno das chantagens e do blefe, a ameaça não seria suficiente para forçar um recuo de um governo de coalização liderado por Lula? 

Por último, o que podemos aprender das recentes eleições portuguesas? A maioria das pessoas responde à pressão pelo voto útil. Mas a avaliação do custo ou benefício de cada opção não é imutável, fixo, ou invariável. No processo da luta política de máxima intensidade as escolhas dependem, também, da escolha dos outros, como ensina a teorias dos jogos. Em Portugal, o trauma do que foi o governo de Passos Coelho, entre 2011/15, foi decisivo para que o PS de Antonio Costa pudesse alcançar a maioria absoluta. A recente vitória da direita nas eleições para a prefeitura de Lisboa, em 2021, estava presente.

Mas a escolha do mal menor obedece a um cálculo condicionado pela informação disponível, essencialmente, pelas pesquisas. Se elas forem manipuladas, o desenlace eleitoral pode ser surpreendente. E diante do impacto das redes sociais, subestimar este perigo seria imprudente. Bolsonaro ainda não foi derrotado.

Prevalece neste momento, com dez meses de antecedência um crescente mal-estar contra o governo Bolsonaro, e esse sentimento condiciona a polarização com Lula, e as candidaturas que disputam entre si o espaço de terceira via rivalizam o apoio do núcleo duro da classe dominante, e a simpatia dos setores médios acomodados, sem aumentarem a audiência. Ou seja, o drama social dos últimos dois anos favorece a antecipação para o primeiro turno do caráter plebiscitário de um segundo turno. Isso quer dizer que, assim como Lula deve arrastar o voto do descontentamento, Bolsonaro pode arrastar o voto anti-petista, como em 2018.

A luta só termina quando acaba. E há um amanhã.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum