HISTÓRIA

A Comuna de Paris, a revolução prematura – Por Valério Arcary

O aniversário da Comuna de Paris nos convida a refletir sobre o seu significado histórico. Quais são as lições que a primeira revolução operária que conquistou o poder, ainda que de forma efêmera, nos legou?

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                              A história nos desmentiu, bem como a todos que pensavam de maneira análoga. Ela demonstrou claramente que o estado de desenvolvimento econômico no continente ainda estava muito longe do amadurecimento necessário para a supressão da produção capitalista; demonstrou-o pela revolução econômica que, a partir de 1848, apoderou-se de todo o continente (...)tornando a Alemanha um país industrial de primeira ordem, tudo isso em bases   capitalistas, o que significa que essas bases tinham ainda, em 1848, grande capacidade de expansão. [1] Friedrich Engels

 

O aniversário da Comuna de Paris nos convida a refletir sobre o seu significado histórico. Quais são as lições que a primeira revolução operária que conquistou o poder, ainda que de forma efêmera, nos legou? O desafio é recuperar as conclusões que Marx e Engels nos deixaram, mas recolocando, também, na perspectiva da História o tema da vigência do programa da revolução social anticapitalista, na aurora do século XXI.

A derrota dramática da Comuna teve, a seu tempo, imensuráveis consequências para o movimento operário francês e para a vida da I Internacional, porque as derrotas históricas não passam impunemente: geram desânimo, desesperança e muita dispersão e confusão.

Mas das cinzas do massacre aos Comunnards, ao longo de um intervalo de menos de duas décadas, nasceu e se reorganizou um novo movimento e a corrente internacionalista animada pela influência das idéias de Marx viu a sua força política se multiplicar por dezenas de países e o programa da revolução socialista veio a ser assumido pela II Internacional e pelo mais influente partido no seu interior, o SPD alemão.

Em 1895, pouco antes de sua morte, Engels reúne sob o título de “As lutas de classe em França” os artigos que Marx tinha escrito sobre a revolução francesa de 1848 e escreve a famosa introdução que ficou conhecida como o seu Testamento político: um texto que associa um balanço da revolução de 1848 às lições da derrota da Comuna e se encerra com uma reflexão sobre as possibilidades e limites da experiência de cinco anos de trabalho e atividade legal do SPD alemão.

Nele Engels retoma as apreciações críticas que Marx tinha formulado no calor dos acontecimentos da Comuna sobre os problemas da estratégia de luta pelo poder e pelo socialismo. Engels afirma, também na Introdução, que a Comuna teria enfrentado a mesma encruzilhada de desencontro histórico, embora , curiosamente chegue a essa conclusão, por um outro caminho: teria faltado à Paris operária e vermelha o apoio social da França “profunda”, a maioria camponesa, e teria faltado à classe operária de Paris uma direção marxista

Reapresenta e aprofunda, também, uma teoria histórico-sociológica da alienação (esboçada nos Manuscritos, e radicalizada na Ideologia Alemã) sobre os limites possíveis da consciência social, que define a ideologia como a expressão de um ocultamento de uma realidade contraditória e invertida. Ou seja, como uma representação imaginária do real. Em outras palavras, reconhece que as classes em luta fazem a história, mas combatem em um terreno definido pelos limites que as ideologias do seu tempo estabelecem, ou seja, combatem em um terreno em que ilusão consciência estão emaranhados.

O famoso “testamento” de 1895 é uma inflexão nas indicações que Marx, e o próprio Engels, tinham antes elaborado sobre as relações entre os tempos históricos e os tempos políticos da transição pós-capitalista. Essas reflexões novas tinham como fundamentação essencial a nova realidade de um partido marxista que havia, pela primeira vez, conquistado influência de massas e passava a ser um elemento objetivo da grande política. Mas não se encontrarão nele antecipadas, avant la lettre, as discussões programáticas que dividirão vinte anos depois o marxismo de forma irreversível entre reformistas e revolucionários. Essa linha de interpretação já foi ensaiada e seus resultados não são convincentes.

Devemos ler os textos dos clássicos com a óptica de quem precisa tomar posição. Enunciemos a questão: as derrotas de 1848 e da Comuna colocaram ou não em cheque, para Marx e Engels, a definição que reconhecia, pelo menos desde o Manifesto, que a abertura de uma época de revolução social, ou seja, um período em que as condições objetivas, no sentido de condições materiais, econômico-sociais, estavam reunidas e maduras nos países mais avançados para que o proletariado se constituísse em classe politicamente independente na luta pela sua revolução anticapitalista?

A teoria da revolução de Marx contém uma reflexão histórica sobre o modelo da grande revolução francesa que teria revelado que existem tendências internas à dinâmica do processo revolucionário, que se desenvolve em permanência, e que se traduzirá no Adresse de 1850 à Liga dos comunistas, na defesa da necessária radicalização ininterrupta da revolução democrática em revolução proletária, isto é, a perspectiva da revolução permanente.

Durante os anos da onda revolucionária aberta em 1848, Marx e Engels alimentavam duas perspectivas que estavam articuladas entre si: (a) a compreensão de que a luta contra o absolutismo e pela democracia só poderia triunfar com métodos revolucionários, isto é, a necessidade de uma revolução  pela democracia, que é analisada no Adresse, em especial para a Alemanha, mas o critério era o mesmo para a França, como a ante-sala da revolução proletária, do que se deve concluir um programa de luta por duas revoluções, ainda que com um intervalo abreviado entre ambas; (b) a compreensão de que existe um desafio histórico a ser vencido: a construção da independência política de classe, condição sine qua non, para que a engrenagem de radicalização que, grosso modo, poderia ser qualificada como a “fórmula jacobina”, não resulte em um estrangulamento da revolução proletária, ou seja, em um novo thermidor, e ao contrário, garanta a mobilização contínua dos trabalhadores pelas suas reivindicações e antecipe e abrevie o intervalo entre as duas revoluções.

O primeiro prognóstico histórico não se confirmou. A Segunda metade do XIX demonstrou que, se estava esgotada a época histórica das revoluções burguesas, (com a possível exceção da guerra civil nos EUA, que poderia com razão, não só pelo programa, mas, sobretudo pelas forças sociais liberadas, e pelos métodos, ser interpretada como a segunda revolução americana), a revolução não era o primeiro, nem o único caminho para burguesia, e as transições tardias encontraram uma via histórica, pelo alto, para abrir o caminho.

Mas só a espantosa capacidade de antecipação histórica, o rigor de método que permite prognósticos visionários, unidos a uma audácia teórica, que está sempre alerta aos novos desenvolvimentos da realidade, podem explicar que Marx e Engels, em meados do XIX, tenham prefigurado alguns dos elementos que serão chaves para compreender a dinâmica interna das revoluções do séc. XX.

Marx em 1848/51 ainda tinha expectativas no possível desenlace de uma revolução democrática na Alemanha, e se a burguesia não ocupasse o lugar de força motriz, trabalhava com a hipótese de que a pequena-burguesia a substituísse e, portanto, a hipótese estratégica preferencial ainda era um projeto de revolução por etapas: intuía, no calor do processo, que os tempos históricos a época das revoluções burguesas se esgotava, e apesar de uma superestimação das possibilidades do proletariado alemão (e também francês), mantinha prudentes reservas sobre as possibilidades de uma revolução proletária, que não fosse preparada e precedida por uma revolução democrática.

Na segunda metade do XIX, o marxismo nasce em um intervalo histórico em que a burguesia européia teme o recurso aos métodos revolucionários, porque está consciente de que quem semeia ventos colhe tempestades. Mas, por outro lado, a sua ascensão econômico-social lhe permite encontrar outras vias para consolidar o seu domínio sobre o Estado e a sociedade e, nesse sentido, não precisa mergulhar no turbilhão de uma mobilização de massas, que não é difícil despertar, mas pode ser extremamente perigoso perder o controle.

A mesma questão, a angústia do revolucionário que vive na contracorrente da época ou situação histórica ressurge, por um outro ângulo, na famosa e injustiçada introdução de 1895, em que Engels retoma o balanço de época e a discussão sobre a permanência da radicalização social no processo revolucionário.

[1] ENGELS, Friedrich. “Introdução à A Guerra civil na França” In MARX e ENGELS. Obras escolhidas. São Paulo, Alfa-Omega, volume2. p.48.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.